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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Histórias perdidas

João-Afonso Machado, 24.03.23

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Não há história mais destelhada do que a recente. Porque é, à nossa vista, uma rampa para a ruína todos os dias descendente, de olhos fechados como o cadáver em velório, como ele já incapaz de responder à nossa curiosidade e, por minutos, chegássemos um nada antes, talvez ainda uma voz de a custo dizer - Eu fui a senhora tal, o orgulho do meu pai, um batalhador que me fez, um salta-pocinhas mineiro ou esclavagista, não sei, homem dos mil ofícios, andarilho por mundos que vos conto...

Faltar-lhe-ia então o tempo de contar. Mas ficava o mote, a gente chegaria lá...

(O tráfego na estrada, vizinha outrora tão prezada, ensurdecedoramente engarrafa os sons e as memórias. Está chegando o cangalheiro com os pesarosos anúncios - "Faleceu", "Vende-se". E os abutres sobrevoam os restos da defunta na ânsia de poisar sobre o melhor preço...)

Tudo treme em volta e na poeira constante vão-se, entretanto, as partes moles: as portadas e as janelas. Depois o caruncho dos homens come-lhe os soalhos e até quaisquer azulejos com preço na traficância. A mais podridão contém todo o género de lixo acumulado na corrosão dos anos.

Fosse um caso isolado seria uma desgraça apenas. Mas é uma epidemia. Um pútrido amontoado de restos mortais sob silvados que são a decomposição da própria terra. Da nossa terra, de nós mesmos, é claro.

(Verte sangue a derradeira amnésia sob que que caiu mais uma telha. E, à cautela, não há quem não fuja sempre mais para a banda...)

 

Panteras de jardim

João-Afonso Machado, 18.03.23

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A gente em caminho por aí fora. E a aparição d'el gato. Paramos. O bichano olha desconfiado o tempo bastante de uma fotografia. Permanece muita coisa, permanece sobretudo o seu olhar....

Confesso que gosto de gatos. Imenso. Tanto quanto a sua personalidade me fascina.

(O meu último, um quase puro siamês, descobri-o na rua, num passeio nocturno com a minha saudosa Senhora, cabia o gatito na palma da mão. E chorava sem parar. - Ficamos com ele? - Sim, ficamos! - E ficámos, muito além dos dias que lhe eram, a Ela, reservados. Mas também um tumor tomou conta do bichano... - Ó Sra. Dra. - pedi - faça o que for preciso. E depois diga quanto é, mas sem pormenores...)

Gosto de gatos. Sempre os tive, filhos das ervas, meus adoptivos. Nunca lhes pus nomes. - Anda cá gato! - era o bastante. A Mãe (que os detestava) admirou-se quando o meu último surgia de repente, vindo não se sabe de onde, chegando eu a casa já noite feita. De cauda levantada, saltando para o colo e assistindo compenetrado ao Fox Crime que nos entretinha o serão. Então a Mãe lá se rendeu e confessou - Este gato é uma simpatia!

E jogava bem com o cachorro e o canário. Harmonia total! Já foram eles... (A minha Senhora surge-me de supetão no espírito e eu cá me acanho...) O gato... aliás, o Gatio, assim o chamava aparentando uma voz zangada.

Outros tempos... Hoje a sós, não tenho gato em casa, somente a minha última perdigueira. Tenho é os gatos que andam por aí nesse estranho modo de fugir e não fugir. De se darem ao retrato e se escapulirem, um passo avançado em sua direcção. Os meus gatos são a rua ou a quinta por inteiro. Uma imagem linda de um animal em quem ninguém manda, mas todos são comandados pela sua pelagem. Os meus gatos são as suas fotografias da minha autoria.

Talvez a selva de que eles são as panteras entre as flores dos jardins um dia volte a mim. Serão anos passando, por hipótese anos meus também. O ronronar dos gatos implica com a idade. Principalmente quando há (houve) tempo de acordar às seis da manhã, a sua pata no meu nariz, o bichano imperioso, eram horas de o conduzir ao prato já cheio de véspera. Mas o pequeno-almoço tinha de ser em companhia...

 

A Adega Gavina

João-Afonso Machado, 14.03.23

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A memória guarda imensas coisas: já vão longe os estaleiros de Vila do Conde, sob a capela de Nossa Senhora do Socorro, de rampa aberta ao Ave. A rua era estreita e contornava a penedia (a capela no topo) e os vidros do carro, se abertos, engoliam todo o resultado da arte e da infrene azáfama dos carpinteiros: o serrim do madeirame, o ruído do cavar das enchós e do vaivém das plainas. No tempo das muitas traineiras em construção  a rolarem pelos toros, obra concluída, até ao rio, baptizadas com uma garrafa de espumante e a benção dos gestos e dizeres do pároco local. Os estaleiros estalavam de gente da faina que, naturalmente, acabava o dia na prodigalidade dos tascos a lavar as gargantas de tanta poeira e a desdizer da sua ingrata vida.

Assim nasceu, ali ao lado, a taberna do Gavina. Em 1953...

As décadas tudo mudaram. Mataram a arte dos carpinteiros e levaram o estaleiro - agora feio, quedo, metalizado - para a margem oposta, em antigos terrenos de aves pernaltas na Azurara. Na banda de cá, repentinou-se um jardim, lugar de devaneio e turismo. Talvez ainda na vida do sr. Abílio Monte, o pai da taberna do Gavina (nome de família perdido, conquanto na minha advocacia no Porto haja tido um cliente com esse apelido...), mas não demoraria a percepção da mina de ouro, o restaurante ao serviço das gentes da praia. Precisamente no sítio dos bagaços de outrora, na primeira quina de quem vem do poente para nascente.

Viu a luz o dito restaurante em 2007 com o nome de Adega Gavina. Casa rija e procurada, que se mantem aberta o ano inteiro.

Lá fui com três amigos e uma almoçarada nesta época estival dos veteranos de Vila do Conde. Enfim, três amigos traduzem uma palração muito além das poucas capacidades do meu espírito. Mas ainda assim não correu mal.

Recebeu-nos o Sr. Gabriel Monte, o actual proprietário e neto do fundador. Escolhe, não escolhe, eu esfomeado - felizmente servido como "entrada" por uma inimitável patanisca de bacalhau - perguntei pelo bife invocando a minha carência de dentes...

Que me sossegasse, era do lombo, era manteiga. Pois então, escolha feita. E o Sr. Gabriel falou com rigor. O bife (uma rara opção minha) foi um regalo. Delicioso! E acompanhado do branco da casa, sem rótulo, proveniente de Amarante, região de transição para o Douro, esperto como o alho, a oferecer-se sempre mais. O leite-creme em açucar queimado rematou o bródio e obrou as minhas pazes com o mundo. Tudo inesquecível!

Mas será de esclarecer, a especialidade da Adega Gavina é o peixe grelhado. E no Verão - o meu inverno vilacondense - o almoço ou o jantar são espécies raras e fugidias, reclamando espera, paciência e resistência. Ou a prévia reserva. Pela parte qe me toca, nada disto tenciono provar. Por isso as minhas futuras visitas apenas até Julho. Para mais um excelente almoço (palração afora) e o mui simpático e atencioso serviço. Obrigado, Sr. Gabriel!