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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

A extraordinária paixão de Alexandra

João-Afonso Machado, 18.03.24

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Alexandra vivia os espantosos dias da juventude passada com o indisfarçável sarcasmo de um rodopio afinal voltas lentas, solitárias e sempre mais esporádicas. Gongorismos à parte, Alexandra apertava-se em armaduras quase couro, tolhida por comichões e alergias, sem que alguém a coçasse. Como quaisquer horas longas de uma avó com os netos distantes.

Assim foi que inventou o ruído e a troça vã ou vingativa. Modernizou-se em mamas juvenis e deitou o fel cá para fora, bolsado no barro que lhe alisava a cara. A política, as figuras de referência de uns tantos, as convicções dos demais, tudo servia a esse auto-exercício de jovialidade. Alexandra, sonhava ela, - Alexandra ainda estava aí para as curvas.

Acendia o cigarro no topo de uma boquilha, aconchegava ao pescoço a peliça de coelho, dava um toque dans le chapeau.. et voilà, o circo criado e o espectáculo sem poder parar!

Alexandra pensava alcançar os seus intuitos. Não pensaria talvez nos do seu séquito. Alexandra porque não "deputava" - não havia partido que a tomasse pelo todo - desfrutava e encaixava-se na coisa pública; frequentava bares finos que ela dizia nova-iorquinos dos filmes. Mas acordava sentindo o frio desprezante da outra metade da cama.

Achava-se mulher com mundo, a espaventosa Alexandra. Deglutindo a paixão nova antes da digestão da anterior. E o Parlamento, sem parança. Onde "deputava", "deputava", e jamais seria deputada; de onde, fosse como fosse, acabaria sempre deportada.

Alexandra era a amiga do Taveira, a tal amiga afamada pela sua conversa sobre o banco inglês onde bem conhecia o Déficit - bem vistas as coisas, um bom rapaz!!!

 

Barcelos sob tempestade

João-Afonso Machado, 14.03.24

Foi uma tarde de domingo sinistra. Mas de todo adequada às solenidades do Senhor dos Passos - e tão dolorosamente adequada que a procissão não saíu, a ventania decerto afundaria o pálio no Cávado e, com ele, quem o quisesse segurar. Ao modo de um paraquedas poisando no lugar mais inconveniente e espinhoso...

Em Barcelos ouvia-se a mais lúgubre música quaresmal. E o sermão, proferido na igreja do Bom Jesus da Cruz, trazia-o o altifalante a toda a cidade. Também na Colegiada de Santa Maria Maior o espaço era exíguo para tanta gente a acobertar-se, incluindo os tiritantes polícias... As artérias barcelenses, inutilmente cortadas ao trânsito, tudo mais complicavam.

Ainda assim fomos. O carro estacionado nas cercanias do Jardim da Barroca

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e um primeiro objectivo, a Torre Medieval, centro de vendas das novidades do artesanato local.

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Depois (sempre remando contra o ar encalpelado e aquoso), a antiga casa dos Machado da Maia, hoje Biblioteca Municipal, no Largo José Novais.

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Daí, muito a custo, demos à costa na Casa do Alferes Barcelense (Gaspar Goes do Rego, o porta-estandarte do Duque de Bragança em Álcacer Quibir, onde morreu)

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e no Largo do Apoio, sombra acolhedora em marés estivais, uma baía musicada pelo seu fontenário, orquestra escondida no temporal.

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Já transportados para as ruínas do Paço ducal, escutámos a ferocidade do rio lá em baixo, sob a ponte velha, de onde até os barbos teriam fugido ao afogamento.

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Barcelos, cidade do meu coração, «cidade morena», como a designou Marta Miranda em monografia da sua autoria, estava zangada, queria-se despovoada nas ruas essa tarde. E por isso o derradeiro refúgio escolhemo-lo no Museu da Olaria.

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Uma lição sobre o País cerâmico inteiro. Um momentâneo conforto. E a História: o galo de Barcelos, em 1900 um franganote invocativo da célebre lenda (em que cantou no prato do juiz que condenara um inocente à forca e se levantou da mesa desabrido, correndo a tempo de evitar a execução da pena...), em 1960 já muito emplumado, sempre mais colorido, revigorado, viajante no mundo inteiro.

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E por aí adiante. A chuva, no exterior insistia em lançar dardos, a visita havia de ser breve, escurecia. Regalámo-nos com os ambientes cálidos de algumas peças

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 e as alegrias vilãs estivais

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a lembrarem António Lopes Ribeiro (e João Villaret): «Tocam os sinos na torre da igreja,/Há rosmaninho e alecrim pelo chão./Na nossa aldeia, que Deus a proteja!/Vai passar a procissão.»...

 

A "galinha mourisca"

João-Afonso Machado, 09.03.24

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O prato vai correndo célere o concelho de Famalicão. Não será impreciso acrescentar foi descoberto na Casa de Camilo (aqui na freguesia de S. Miguel de Ceide), através da leitura de uma novela do Mestre intitulada O Santo da Montanha - minha desconhecida - onde a receita virá explicitada. E os responsáveis da dita Instituição, mercê de diversas tentativas com renomados restaurantes da região, parece que lograram chegar ao apuro final. Já o saboreei algumas vezes.

Nesta última em almoço condigno na própria Casa-museu, preparado pel'O Prato, um restaurante em Landim.

Pois assim que pude abeirei-me do Chefe a saber em que consistia (eu implico com o termo "confeccionar", que isto não são texteis...) o manjar. Tudo gira, então, à volta de uma galinha idosa, de carnes rijas. (Sabia já, nas capoeiras da minha gente se deixavam envelhecer as penosas, no intuito de as vender com tal finalidade - assaz excentricamente, posto o normal é as galinhas fenecerem cedo, jamais por doença, mas assadas, cozidas ou fritas...)

Com o bicho ainda em cru é barrado em gordura animal, a tirar-lhe a secura das velhas resmungonas. Depois fica a refogar, aliás de um dia para o outro, e com as suas miudezas elabora-se um caldo a verter na sua antiguidade. E, depois ainda, sobrevém as ervas aromáticas, as gemas, o sumo de limão e os molhos. Até à sua rendição como beata intragável. Antes de vir para a mesa, na travessa uma cama de pão alentejano, bem embebida, pelo sim, pelo não, e uns ovos escalfados. Para acompanhamento, à margem, o arroz branco.

À escolha do freguês, para dessedentar, vinho maduro tinto ou o verde branco de cá. Optei por este último.

Em suma, um prato para já um exclusivo famalicense. Num almoço muito participado, inclusive pelas convidadas entidades camarárias. A gosto unânime dos comensais.

E daí a longa série de discursos a entreter a digestão. Era sábado...