Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Ruílhe - O Centro Social do Padre David

João-Afonso Machado, 28.01.23

IMG_6942.JPG

O outro dia, indo ao armeiro, perto de Barcelos, buscar uma espingarda que necessitara de conserto (é sabido, está iminente uma invasão de faisões e a gente tem de se defender), em vez de seguir a Braga cortei por estradas secundárias até Tadim e S. Julião dos Passos. E no aperto de uma qualquer das tantas curvas dei lá no fundo com o casario de Ruílhe e a construção imensa que nele ressalta. Eram as minhas memórias em ebulição e o Centro Social Padre David de Oliveira Martins.

Ainda não ocorrera a revolução abrilina nem a electricidade chegara a minha casa. Deitado no catre lia à luz de um fumarento candeeiro a petróleo e ouvia o pouco produzido pela telefonia a pilhas - a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português e a Renascença, tudo em onda média, é claro.

As temperaturas negativas desses invernos puxavam-nos para debaixo dos cobertores, as aulas matinais significavam um verdadeiro tormento e só a visão dos coelhos madrugadores (um naco de broa e um bagacito para as mãos suportarem o ferro da arma...) faziam esquecer as geadas nos campos e o entretém da telefonia; nesses anos em que as notícias rareavam mas os coelhos não, e os radialistas deviam usar gravata e a cara bem escanhoada, dizendo umas coisitas entre anúncios de fogões a gaz e adubos para os milheirais.

Ouvia-se logo então, para delícia das criadas, o Patxi Andion e doses maciças da nossa música popular. Não fora o pimba ainda criado até porque a II República era austera, muito cheia de rigores morais. Mas dessas manhãs geladas recordo a audição diária de uma canção onde o verso «sám tám lindos os galinhos de Barcelos» introduzia o refrão - «có-có-có, có-có-ri-cócó, có-có-có, có-có-ri-cócó» - cantado em tom de dono absoluto da capoeira.

Mais coisa menos coisa, chegavam por fim os cinco minutos de audiência do Padre David de Oliveira Martins, incansável todos os dias rogando uma esmola, um donativo, para o Centro Social da sua paróquia de Ruílhe. Algo que se percebia estar em crescimento e teve por causa primeira, no início da Década de 50 (!), a orfandade dos sete filhos do gravateiro da vizinha freguesia da Aveleda. De então para cá...

A voz do Padre David de Oliveira Martins nada tinha do habitual serafismo dos clérigos da época. E era humilde mas não lamurienta, era a voz de quem não pedia para si mesmo. Era insistente e o Centro Social foi crescendo, é hoje descomunal e constitui uma notável estrutura de apoio à infância e à terceira idade das localidades em redor. Continua a subsistir graças à generosidade e à boa vontade de muitos. O Padre David de Oliveira Martins conseguira eu revivesse todos os coelhos e o infernal «có-có-có, có-có-ri-cócó» da minha adolescência. Nascido em 1904, já não poderia estar entre nós, mas desci à aldeia a saber mais dele. O recepcionista do Centro ignorava a data da sua morte, ocorrida em 1990. Anos antes fora até condecorado pela República, e o Padre David de Oliveira Martins, já muito doente e debilitado, não soube recusar essa medalha, coitadinho.

 

"Valsa a bordo" (bis)

João-Afonso Machado, 23.01.23

187.JPG

Se me é permitido aconselhar, busquem no You Tube o Take This Waltz do Leonard Cohen. De preferência na versão ao vivo do concerto em Londres, ou mesmo no de Dublin. Em ambos, a mais bonita valsa, o final do espectáculo, Leonard Cohen, já de idade, apresentando depois os seus músicos, que são vários, dando primazia à guitarra portuguesa tocada por Javier Mas. E ainda, além dos outros, a sua «collaborateur, the incomparable» Sharon Robertson.

Leonard Cohen sai, dançaricando pelo fundo do palco. Mas deu-me o bastante para me encantar com o lá-lá-lá de Sharon Robertson. Isto há mais de dois anos. E desafiei-a, então, para a "Valsa a bordo" que para ela escrevi:

 

«Viagem futura cuidando marés,

dia imenso de altura e cidade, vais flutuando

no cais por onde és

em sonhos sem idade ou abrigo,

somente trepando comigo

elevadores arfando de amores…

 

E vamos e vamos de gala vamos,

por fim o baile querida,

por fim esta valsa nossa vida,

 

poisa por fim o xaile,

a tua mão em meu ombro caída

e a outra entre a minha

de braços girando em vaga marinha,

 

dançando, dançando, dançando,

sempre sempre volteando

até um dia, essa melodia,

esse dia - até quando?».

 

Hoje ainda a danço com Sharon nos pés tristes do meu espírito. Publiquei-a em casa blogger que habitei até 2020. Mas prosseguirei, tempo fora, com essa mulher fascinante que no limite das palavras haverá sempre de lançar o seu olhar dengoso e repetir um eterno, melódico, - Lá-lá-lá.  Dedicado a mim, é claro.

 

 

VC - alerta vermelho

João-Afonso Machado, 22.01.23

IMG_6903.JPG

Não era vento, eram muitas vozes, gerações delas. Nem era chuva, antes um horizonte de lágrimas e saudade. A fúria do mar apenas memórias inconformadas dos agitados verões tão tranquilamente sós. E essa quietude da nossa praia mais a espelhava a ausência de transeuntes na marginal. Alerta vermelho!... Talvez arroxeado, e Vila do Conde jazendo entre a lenha que a maré trouxe e semeou no areal à espera somente declarassem o seu óbito.

É agora a época estival dos bisavós e dos avós, dos pais. De tantos que já foram ou dos poucos que ainda resistem. Depois será o tempestuoso ruído do espaço invadido pela multidão. Doerão as lembranças de antigamente, recatados contornos da idade posta em casaquinho de malha pelos ombros espreitando curiosa a praia, a barriga debruçada no paredão. Mais os "palhinhas" e a calça beje e conversa, conversa e conversa que só a pontual hora do almoço calava.

Não sei o que me levou ao pranto de Vila do Conde. Estou em crer, uma nesga de Pai e de Mãe, da Avó, soltando sobre os rochedos, salpicando beijos e recados que se dão aos meninos. Quão ansiei uma reprimenda, um castigo até, - que fizera eu ao chapéu nesse sol de saudades em que esqueci a chuva e o vento, a violência do mar?

"Alerta vermelho no litoral nortenho", anunciaram os meteorologistas. Sem dúvida um código. Decifrado. Ou não os sentisse todos lá, já fora das cronometrias, dessa implacável contabilidade que ainda não implicou comigo. Foi um gosto revê-los na espuma que ciciava pela areia ou nas mais autoritárias vozes das vagas contra as rochas. O dia chegará em que a assembleia me terá também. Afinal de contas, a juventude foi ontem.

 

 

Pág. 1/3