Ruílhe - O Centro Social do Padre David
O outro dia, indo ao armeiro, perto de Barcelos, buscar uma espingarda que necessitara de conserto (é sabido, está iminente uma invasão de faisões e a gente tem de se defender), em vez de seguir a Braga cortei por estradas secundárias até Tadim e S. Julião dos Passos. E no aperto de uma qualquer das tantas curvas dei lá no fundo com o casario de Ruílhe e a construção imensa que nele ressalta. Eram as minhas memórias em ebulição e o Centro Social Padre David de Oliveira Martins.
Ainda não ocorrera a revolução abrilina nem a electricidade chegara a minha casa. Deitado no catre lia à luz de um fumarento candeeiro a petróleo e ouvia o pouco produzido pela telefonia a pilhas - a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português e a Renascença, tudo em onda média, é claro.
As temperaturas negativas desses invernos puxavam-nos para debaixo dos cobertores, as aulas matinais significavam um verdadeiro tormento e só a visão dos coelhos madrugadores (um naco de broa e um bagacito para as mãos suportarem o ferro da arma...) faziam esquecer as geadas nos campos e o entretém da telefonia; nesses anos em que as notícias rareavam mas os coelhos não, e os radialistas deviam usar gravata e a cara bem escanhoada, dizendo umas coisitas entre anúncios de fogões a gaz e adubos para os milheirais.
Ouvia-se logo então, para delícia das criadas, o Patxi Andion e doses maciças da nossa música popular. Não fora o pimba ainda criado até porque a II República era austera, muito cheia de rigores morais. Mas dessas manhãs geladas recordo a audição diária de uma canção onde o verso «sám tám lindos os galinhos de Barcelos» introduzia o refrão - «có-có-có, có-có-ri-cócó, có-có-có, có-có-ri-cócó» - cantado em tom de dono absoluto da capoeira.
Mais coisa menos coisa, chegavam por fim os cinco minutos de audiência do Padre David de Oliveira Martins, incansável todos os dias rogando uma esmola, um donativo, para o Centro Social da sua paróquia de Ruílhe. Algo que se percebia estar em crescimento e teve por causa primeira, no início da Década de 50 (!), a orfandade dos sete filhos do gravateiro da vizinha freguesia da Aveleda. De então para cá...
A voz do Padre David de Oliveira Martins nada tinha do habitual serafismo dos clérigos da época. E era humilde mas não lamurienta, era a voz de quem não pedia para si mesmo. Era insistente e o Centro Social foi crescendo, é hoje descomunal e constitui uma notável estrutura de apoio à infância e à terceira idade das localidades em redor. Continua a subsistir graças à generosidade e à boa vontade de muitos. O Padre David de Oliveira Martins conseguira eu revivesse todos os coelhos e o infernal «có-có-có, có-có-ri-cócó» da minha adolescência. Nascido em 1904, já não poderia estar entre nós, mas desci à aldeia a saber mais dele. O recepcionista do Centro ignorava a data da sua morte, ocorrida em 1990. Anos antes fora até condecorado pela República, e o Padre David de Oliveira Martins, já muito doente e debilitado, não soube recusar essa medalha, coitadinho.