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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

A soirèe

João-Afonso Machado, 17.01.23

R. DE CAMPO DE OURIQUE.JPG

É mai'logo, pela tardinha com lanche de categoria e ceia já domingo adentro, a dançar connosco. A gente sonha a semana toda com este soalho, este salão, as fitas e as luzes, nós sempre a cocar, elas no canto de lá a rirem, como se não fosse nada. E a gente a comentar, a adivinhar o que irá por baixo daqueles vestidos, se só velhice, se ainda alguns vestígios de outras idades... Não vá dar-lhes o badagaio e cairem abaixo dos saltos altos durante o foxtrot.

Somos quase sempre os mesmos. Pomba nova que pouse na Sociedade é alarido certo no pombal. Um alvoroço como o do sábado passado com essa moça de cabeleira bem armada, a modos que amarela, a Ivone, tão bem dança a moça, ninguém lhe dá os 70 que dizem que tem. Dizem!... - que quem vai tirar a limpo a sua idade sou eu, aqui o je, hoje ainda. Os camaradas bem podem fazer fila à espera que a Ivone é para mim. E se não para quê, já larguei 100 euros da minha reforma num fato novo que é uma categoria, cinzento, camisa negra, gravata violeta, sapato a estrear. Afora a manhã no Zé Barbeiro, bem escanhoado, cabelo aparado e lavado, abrilhantinado, perfume até mai'não de fartura.

- A menina dá-me a honra desta dança? - é como se já fosse, a mazurca, a valsa, a Ivone, levezinha, a erguer a perna quando eu a vergar numa volta do tango. Qu'isso de dançar é comigo, dá sempre manjerico a minha arte, sem o cheiro do tabaco ou do copito de três na adega do Tónio. Eu bem lhes digo, aos parceiros; depois queixam-se que elas torcem o nariz, menos as mastronças, coitadas, pois elas... Não, a Ivone, aquilo foi azar que teve na vida, é senhora com finesse, só um cego é que não vê logo. Hei de levá-la às festas de Alcochete, havemos de passear muito pelos miradouros da cidade, subir ao castelo... ir a Sintra, à Praia das Maçãs, ficar por lá uma noite numa hospedaria qualquer.

Já estou aqui que não aguento a espera. E a porra dos ponteiros do relógio que parecem defuntos! Não posso esquecer de pedir ao Manel Goelas que cante o Gianni Morandi e o Volare Volare, só para animar o baile. - Que bem a menina dança, tão graciosa! - E ela muito sorridente, a pestanejar do nervoso miudinho, os lábios e as unhas mais encarnados que o Benfica - O cavalheiro, que charme, mas que galante!, que bem conduz!...

Ai! Ivone que és minha e só minha, e não deves ter esquecido nada. Eu lá estarei, o doutor diz que o meu coração é dos bons e portanto ainda posso tomar a pastilhita da ocasião, mas sem abusar.

 

A Maria da Mouraria

João-Afonso Machado, 13.01.23

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Chegados ao Martim Moniz é um instante pela Rua do Capelão até ao Largo da Severa. Em outra pátria, a do fado, e, com toda a precisão, na remodelada casa que foi o abrigo dessa mulher de voz fatal, o símbolo do Destino carregado às costas.

Mas tudo decorre agora arejadamente entre paredes brancas - há luzes, há flores... - e uma sala intimista piscando o olho ao turista. A Maria da Mouraria abre à noite, de quarta a sábado, ao som de guitarradas oriundas de ocultos amplificadores. E, uma vez à mesa, as entradas caem sobre a toalha ao ritmo em que a Susana explica os trâmites da liturgia gastronómica-fadista. Deixei que a minha companhia se inteirasse da aula teórica e ataquei logo o bom pão, o bom queijinho (a tacinha de compota de abóbora vinda com ele...), as favas cozidas e o grão-de-bico, a prova de cidra. Quando tal, a fadista e os músicos instalavam-se no seu recanto.

Margarida Soeiro é uma expressão belíssima, um sorriso que me atou à sua pessoa e uma voz com créditos firmados. Acompanham-na Ricardo Parreira, na guitarra, e na viola Carlos Viçoso. O espaço é exíguo, a fadista está entre a parede e os tocadores, de mãos amaciando as pontas do xaile; cumprimenta os presentes, olha em redor com os olhos de um olhar só dela, entristecido, misterioso, e põe as costas na dita parede. Ergue a fronte e ensaia melancólica um primeiro fado; já o segundo sai alegre, gingão, a parede soltou as costas da fadista que agora sorri, graças a Deus. Nas mesas há britânicos, malaios, tripeiros faladores, lisboetas... e um famalicense. E há fartos e sinceros aplausos. Fora só o primeito acto fadista ainda. Logo me confronto com o meu bife de atum regado com um branco Casa da Urra, alentejano da Cuba bom cumpridor dos seus deveres.

Conversámos com a Margarida Soeiro. Havia conhecimentos comuns, quase relações de parentesco (não comigo) e - assim mais perto - rendi-me incondicionalmente ao seu sorriso: ali estava literalmente prisioneiro dele.

Mas fui mantendo o duelo com o poderoso tunídeo sempre animado pelo branco cubano mai-las batatinhas cozidas e a couve branca. Galharda e prazenteiramente.

Chegava a maré do Pedro Moutinho. (É o Camané! É o Camané! - exclamava-se quase baixinho na mesa do Porto. Não, não é - é um seu irmão.) O acompanhamento instrumental era o dessa noite e a sua voz poderosa, capaz da abanar a parede a vibrar também com o arrebatamento da guitarra no último fado.

Em Dia de Reis, findavam as Festas, à sobremesa duas fatias do grande bolo que um cálice de ginjinha humedeceu. À Margarida Soeiro coube fechar o serão (sempre encantadora), o grupo britânico já se levantava, o malaio também, os tripeiros sairam discretamente. Fizemos as despedidas, não sem antes proclamarmos a Susana a Severa da actualidade, bebido que foi o último copo do Casa da Urra.

 

Gloriosas autogestões

João-Afonso Machado, 08.01.23

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Nesta altura, perigosamente vizinha das frequências, já são inocultáveis os aromas da Queima das Fitas, de tão demolidora semana de Maio, a primeira, feita muito de farra pesada e da libertinagem que se impõe. Os serões prolongam-se e por eles, sem pensar, damos à troca a sensatez das horas de estudo.

Em um desses andares, algures no Porto, a progenitura foi em missão de trabalho para um satisfatório longe. É um dos mais apetecidos poisos de paródia ao som de quantos memoráveis hinos em vinil - Wonderfull Tonight do Eric Clapton (na versão ao vivo do Just One Night), o Africa dos Toto... Tinham ficado os dois mais velhos para não atrasarem os estudos universitários. São lá as noites de imensos, eles e elas sempre renovados, conhecimentos recentes facilmente deslizando para o namoro. Sejamos francos: para a curtição. O dinheiro muito contido, e o garrafão de vinho assaz solicitado.

Saio à rua é já dia, tenho até à noite para nem me aproximar da sebenta. Excelentes foram essas horinhas de cama clandestina. Os meses cavalgam (mais que o Outubro e o Novembro até ao Natal!), o Prof. de Sucessões marcou a frequência para o primeiro dia após a Queima. Ou seja, tendo a garraiada por véspera...

Engraxo afincadamente os meus sapatos de atacadores. Esta noite é Espinho, é o baile de gala. Dás-me um jeito no cabelo e encostas a tua boca ao meu bigode de estimadas pontas. Os preparativos estão no fim. Gosto do teu negro vestido de cerimónia, comprido, quase a varrer o chão. Com um decote que me excita, poetei os teus cabelos de ninfa à solta no bosque... (- E que tal o smoking do meu Avô?)

És bailarina de longa carreira pela frente. A orquestra do casino esmera-se em ritmos nos quais tropeço e dou comigo sob o teu comando, como um cãozinho, atravessando desajeitadamente o salão todo. Não pagámos bilhete, não temos mesa nem ceia, vale-nos à fome a solidariedade de alguns amigos mais abonados. A noite será demorada e o nascer do sol desta vez não marcará a minha saída, antes a minha entrada. Nem que seja por uma janela do prédio, olha, não me encadeasses com o teu decote...