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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

O homem de negócios em Bordéus

João-Afonso Machado, 24.02.23

Isto eu nunca contara, a minha veia comercial carregada do sangue da Avó, esforçada e bem sucedida criadora de animais de capoeira, intemerata mesmo depois do perigosíssimo galo lhe ter espetado um esporão na perna, obrigando-a a ser suturada no Sr. Valinhas-enfermeiro, com tremenda infecção sequencial, etc, etc.

E foi nestas aplicações negociais que me vi de repente em Bordéus sem conhecer alguém, simplesmente de rua em rua inquirindo sobre os famosos bleus, a nobre raça da Gasconha.

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Imaginava-os em uma dos muitos milhares de esplanadas que povoam a cidade, à porta do cafè, da brasserie, orgulho dos seus donos, orgulhosos gascões. E insistia - Monsieur (ou Madame, si c'était le cas) vous connais la votre race des chiens, les bleus de Gascogne? - ante a total ignorância dos interpelados.

Sofri. Sofri dores quando na imensidão da Place de la Bourse topei uns tantos peões e alguns rafeirotes

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ou a vulgaridade dessas raças em que tropeçamos todos os dias. Ocorreram-me saudades do meu Pai, outro formidável homem de negócios, naquela sua ida a Castelo Branco para transaccionar um rebanho de cabras montesas que não havia pastor que tivesse mão nelas. E criei esperanças à vista de La Gardonne, dos seus passeios, das pontes nesse sábado de recreio. O trajecto seria longo, da velha Pont de Pierre até à criativa Pont Chaban-Delmàs.

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E ali me pus à coca horas a fio. O rio corre bravo e inodoro. Mas na mais feia coloração, fatalmente filha da poluição. O dia acordara muito bem disposto e os bordaleses também. Juraria ter visto gazelas pulando nas margens do Gardonne

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mas seria decerto o efeito do meu cansaço e desalento. Para as bandas da ponte nova o resultado não diferia.

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E foram dois dias neste infrutífero investimento. Também o Pai de um momento para o outro despachara todo o curral dos porcos, nos anos já velhos da peste suína, e a vacaria que sucumbiu às reduzidas quotas leiteiras e à "loucura" que nos idos de 90 atingiu os bovinos europeus. Vale sermos proficientes homens de negócios e ainda sobrarem uns cavalos e uns burros mirandeses por cá.

De modo que me abalancei ao almoço no Les Drôles, a conselho de uns portugueses que vendiam pasteis de nata nas imediações e não tinham qualquer obrigação de conhecer os bleus - le grand, le petit, le griffon ou le basset - da região. Valeu a pena! - Mademoiselle, je veux tout ce qui j'ai le droit! - E veio uma entrée com um queijo esplendoroso, le plat, salmão bem tratado, e le dessert, um creme de caramelo igualmente produzido por finas mãos. Mais a fatal boteille de Bordeax branc toda pimpona.

A busca prosseguiu mas já desesperançada. Au Jardin Publique não faltavam os canídeos e outros interesses, diversos embora.

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Lembrei o empório anatídeo da Avó, os seus gansos e patos, o destino que os esperava à nossa mesa.

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Lembrei até os seus coelhos na minha infância em que se caçava todos os dias e o bicho doméstico não tinha cotação culinária perante o selvagem. (Só a Mãe não fazia distinções, coitadinha, vinda da cidade onde viveu os racionamentos da II GG...) Por isso os coelhos acabavam na feira, depois daquelas semanas em que, ainda sem nos arranhar ao espernearem, a Avó presenteava os netos com ninhadas inteiras.

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Bordéus foi tudo isso. Foi ainda a Cathedral de St. Andrè e outros tantos monumentos. E à vista de certos infortúnios

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foi afinal a certeza de que os verdadeiros homens de negócios nunca perdem nos seus investimentos, quando muito adaptam-nos. Mesmo porque o Pai e a Avó, onde estão, não se esqueceram de mandar cá abaixo a devida companhia,

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o estorninho-malhado, posto sobre os bancos do jardinzito, piando melodicamente a manhã toda. E a brilhar das penas ao sol, tons lindíssimos como os da pelagem dos bleus de Gascogne...

 

Faisões estufados à Portuguesa

João-Afonso Machado, 19.02.23

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É sempre merecida uma palavrinha de apreço aos vizinhos aqui da frente, da gloriosa corporação Portuguesa, assim chamada, restaurante de bom peixe, boas vitualhas e, chegada a vez, excelente faisão.

A vez chegou o passado fim de semana. É do conhecimento geral. Evidentemente não em quantidade extensível à casa inteira, mas apenas para uma mesa, a última a ser posta e onde se sentam a D. Alexandrina e o Sr. Martinho, mais o pessoal de serviço e um fornecedor que sou eu. Em torno de uns faisões estufados com muita ciência (o Sr. Martinho pormenoriza os condimentos, as voltas que os bichos levaram, o que lhe ocorreu acrescentar), o molho a escorrer pela colher em cima do arroz e mesmo umas batatinhas (em culinária é onde o diminuitivo carinhoso faz mais sentido) - umas batatinhas fritas às rodelinhas que são das maiores habilidades à Portuguesa.

Os faisões foram muito gabados, mérito de quem os cozinhou. Parece que ainda ficaram no congelador os bastantes para uma segunda ronda.

Mas quanto à sua plumagem, outro assunto largamente debatido, tudo está já ultimado. É necessário fazer seguir a valiosa carga para sul. Ando em trabalhos de uma custódia magnífica, peça única de ourives, e de um séquito de arqueiros, besteiros e outros homens de armas. Adiante o arauto, as trompas e as charamelas e uma proclamação desenrolada em voltas e voltas e voltas de pergaminho, ao pé da qual Luís de Góngora fará as vezes de um vulgar aluno da 4ª classe.

 

Monólogo do rendeiro

João-Afonso Machado, 14.02.23

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Quando os patrões compraram um desses carros grandes todos cromados, como os da cidade, e me foram dizendo iam de férias para as praias eu topei logo a mosca no caldo, que o mundo estava a dar uma volta. Mesmo já ouvira os filhos, a vida na aldeia é uma pasmaceira, eles queriam as ruas cheias de gente e as lojas e os artistas da música, queriam um prédio com 'levador, estudar para doutores. E os pais ricos, mais de cem pipas de vinho por ano, outros tantos carros de milho, só em rendas, fizeram-lhes a vontade. O resultado é isto: a casa a cair aos bocados e os silvados a comerem-na toda. Não puseram cá mais os pés, há de a vergonha pintar-lhes a cara, e é o Martins que se encarrega de receber pelo S. Miguel...

De jeito que nem sei como dizer ao patrão, chove-me na sala e nos quartos como na rua, o soalho tem mais buracos que madeira e uma pouca-vergonha assim não a consentiria o senhor seu pai que Deus tem e eu muito bem conheci, e tanto gostava desta quinta que já o meu falecido pai trazia que era um brinco.

E entrementes fala-se na cidade a crescer para estas bandas. E eu acredito pois a nossa igreja de Paranhos já esses mamarrachos lhe fazem sombra aos sinos! Que será de nós? Eu vou para velho, não que não atrele o arado aos bois e não faça ainda a lavoura toda da quinta. E trepo ao escadote e podo, vindimo e ainda fabrico o vinho que é de fama e vai todo vendido à freguesia aqui à porta... A mulher doi-se das costas, diz que são os rins, mas também ainda faz pela vida... As cachopas estão casadoiras mas sem dez reis para o bragal... E os moços já só falam na França e na Alemanha, qual tropa, qual carapuça!, ainda são os mais finos de todos, o raio dos moços! 

Não tarda vem aí o tempo das sementeiras. Toca a descalçar os socos e a correr na terra fria, para cá e para lá, eia boi!, a fazer a cama do milho. E ele crescendo, a mondá-lo, a ceifá-lo, a desfolhá-lo. Vai nisto uma vida inteira enquanto os fidalgos na cidade bem sentados, comendo dos merceeiros, a criada na cozinha, sem que uma gota de água lhes manche os tectos. E o que é mais: andaram os senhores antigos em trabalhos de tal teor, o que aqui não está em dinheiro pago aos mestres pedreiros!, para depois o bravio lhes picar a campa e a alma!

 

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