Monólogo do rendeiro
Quando os patrões compraram um desses carros grandes todos cromados, como os da cidade, e me foram dizendo iam de férias para as praias eu topei logo a mosca no caldo, que o mundo estava a dar uma volta. Mesmo já ouvira os filhos, a vida na aldeia é uma pasmaceira, eles queriam as ruas cheias de gente e as lojas e os artistas da música, queriam um prédio com 'levador, estudar para doutores. E os pais ricos, mais de cem pipas de vinho por ano, outros tantos carros de milho, só em rendas, fizeram-lhes a vontade. O resultado é isto: a casa a cair aos bocados e os silvados a comerem-na toda. Não puseram cá mais os pés, há de a vergonha pintar-lhes a cara, e é o Martins que se encarrega de receber pelo S. Miguel...
De jeito que nem sei como dizer ao patrão, chove-me na sala e nos quartos como na rua, o soalho tem mais buracos que madeira e uma pouca-vergonha assim não a consentiria o senhor seu pai que Deus tem e eu muito bem conheci, e tanto gostava desta quinta que já o meu falecido pai trazia que era um brinco.
E entrementes fala-se na cidade a crescer para estas bandas. E eu acredito pois a nossa igreja de Paranhos já esses mamarrachos lhe fazem sombra aos sinos! Que será de nós? Eu vou para velho, não que não atrele o arado aos bois e não faça ainda a lavoura toda da quinta. E trepo ao escadote e podo, vindimo e ainda fabrico o vinho que é de fama e vai todo vendido à freguesia aqui à porta... A mulher doi-se das costas, diz que são os rins, mas também ainda faz pela vida... As cachopas estão casadoiras mas sem dez reis para o bragal... E os moços já só falam na França e na Alemanha, qual tropa, qual carapuça!, ainda são os mais finos de todos, o raio dos moços!
Não tarda vem aí o tempo das sementeiras. Toca a descalçar os socos e a correr na terra fria, para cá e para lá, eia boi!, a fazer a cama do milho. E ele crescendo, a mondá-lo, a ceifá-lo, a desfolhá-lo. Vai nisto uma vida inteira enquanto os fidalgos na cidade bem sentados, comendo dos merceeiros, a criada na cozinha, sem que uma gota de água lhes manche os tectos. E o que é mais: andaram os senhores antigos em trabalhos de tal teor, o que aqui não está em dinheiro pago aos mestres pedreiros!, para depois o bravio lhes picar a campa e a alma!