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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Eu distribuidor de ovos e frangos

João-Afonso Machado, 28.03.23

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É tarefa minha a venda de ovos e dos frangos lá da quinta. Encargo semanal, o Porto reside neste mundo mas a viagem pela auto-estrada fica-me vedada pela Datsun 1400, peça rara, que um tio já no seu leito final decidiu legar-me. A carrinha de caixa aberta e muito escangalhada nem queria conhecer outro percurso senão o da N14... Debalde a levei ao Zé Mecânico, papel assinado na mão, era minha, e o Zé Mecânico - Sossegue que a ponho como uma princesa, deixe-a cá. - E eu deixei e quando voltei por ela, o motor parecia um gatinho a miar, os estofos eram como poltronas e o seu azul-bebé só me calou porque o Zé Mecânico se tinha empenhado, sorria prazenteiro da obra, e de preço foi comprovadamente amigo. Deixei o caneco de água fria entre os meus pensares, carreguei os ovos e os frangos e até agora...

(Em boa verdade, à vista do que circula por aí, a minha Datsun não envergonha, velha gaiteira cromada como sempre foi e calçada em jantes ainda em idade fértil, decerto pintada como os vitoriosos estandartes do Império do Sol Nascente...)

... Até agora consegui jamais levá-la à auto-estrada. As idosas são assim: é a N14 e ponto final parágrafo. - Ó filha, e a Trofa? E aquelas rotundas todas? E o labirinto das placas? Ainda acabamos sei lá onde, às tantas em Vila do Conde!...

Que não. Que é pela N14. E teimosia por teimosia, também não prescindo do meu casaco de tweed, da gravata fininha, dos botões de punho, como se os ovos e os frangos viajassem em carripana tirada a três parelhas com o cocheiro de libré.

É máquina sobrevivente da ameaça atómica. O motor, um samurai. A caixa de velocidades sempre o golpe do perno das mudanças, mais extenso que o sabre e silvando como os seus travões nas infernais rotundas. E é o Porto que se aproxima da minha Datsun (1400 - peça rara), ninguém diga ser o contrário. Já no destino, estacionados, os ovos e os frangos na caixa, em pleno coração da Invicta, a ordem é seca e sem ses - Vai, entrega isso e não demores: multas no meu limpa-pára-brisas humilham-me...

Submisso, o tweed já remendado com bocados de coirame, pobrezas de farmer, a gravata fininha e os botões a arranharem-me os pulsos, eu vou. Carregado de ovos e frangos, um ou dois quarteirões a pé, conforme...

 

Histórias perdidas

João-Afonso Machado, 24.03.23

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Não há história mais destelhada do que a recente. Porque é, à nossa vista, uma rampa para a ruína todos os dias descendente, de olhos fechados como o cadáver em velório, como ele já incapaz de responder à nossa curiosidade e, por minutos, chegássemos um nada antes, talvez ainda uma voz de a custo dizer - Eu fui a senhora tal, o orgulho do meu pai, um batalhador que me fez, um salta-pocinhas mineiro ou esclavagista, não sei, homem dos mil ofícios, andarilho por mundos que vos conto...

Faltar-lhe-ia então o tempo de contar. Mas ficava o mote, a gente chegaria lá...

(O tráfego na estrada, vizinha outrora tão prezada, ensurdecedoramente engarrafa os sons e as memórias. Está chegando o cangalheiro com os pesarosos anúncios - "Faleceu", "Vende-se". E os abutres sobrevoam os restos da defunta na ânsia de poisar sobre o melhor preço...)

Tudo treme em volta e na poeira constante vão-se, entretanto, as partes moles: as portadas e as janelas. Depois o caruncho dos homens come-lhe os soalhos e até quaisquer azulejos com preço na traficância. A mais podridão contém todo o género de lixo acumulado na corrosão dos anos.

Fosse um caso isolado seria uma desgraça apenas. Mas é uma epidemia. Um pútrido amontoado de restos mortais sob silvados que são a decomposição da própria terra. Da nossa terra, de nós mesmos, é claro.

(Verte sangue a derradeira amnésia sob que que caiu mais uma telha. E, à cautela, não há quem não fuja sempre mais para a banda...)

 

Panteras de jardim

João-Afonso Machado, 18.03.23

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A gente em caminho por aí fora. E a aparição d'el gato. Paramos. O bichano olha desconfiado o tempo bastante de uma fotografia. Permanece muita coisa, permanece sobretudo o seu olhar....

Confesso que gosto de gatos. Imenso. Tanto quanto a sua personalidade me fascina.

(O meu último, um quase puro siamês, descobri-o na rua, num passeio nocturno com a minha saudosa Senhora, cabia o gatito na palma da mão. E chorava sem parar. - Ficamos com ele? - Sim, ficamos! - E ficámos, muito além dos dias que lhe eram, a Ela, reservados. Mas também um tumor tomou conta do bichano... - Ó Sra. Dra. - pedi - faça o que for preciso. E depois diga quanto é, mas sem pormenores...)

Gosto de gatos. Sempre os tive, filhos das ervas, meus adoptivos. Nunca lhes pus nomes. - Anda cá gato! - era o bastante. A Mãe (que os detestava) admirou-se quando o meu último surgia de repente, vindo não se sabe de onde, chegando eu a casa já noite feita. De cauda levantada, saltando para o colo e assistindo compenetrado ao Fox Crime que nos entretinha o serão. Então a Mãe lá se rendeu e confessou - Este gato é uma simpatia!

E jogava bem com o cachorro e o canário. Harmonia total! Já foram eles... (A minha Senhora surge-me de supetão no espírito e eu cá me acanho...) O gato... aliás, o Gatio, assim o chamava aparentando uma voz zangada.

Outros tempos... Hoje a sós, não tenho gato em casa, somente a minha última perdigueira. Tenho é os gatos que andam por aí nesse estranho modo de fugir e não fugir. De se darem ao retrato e se escapulirem, um passo avançado em sua direcção. Os meus gatos são a rua ou a quinta por inteiro. Uma imagem linda de um animal em quem ninguém manda, mas todos são comandados pela sua pelagem. Os meus gatos são as suas fotografias da minha autoria.

Talvez a selva de que eles são as panteras entre as flores dos jardins um dia volte a mim. Serão anos passando, por hipótese anos meus também. O ronronar dos gatos implica com a idade. Principalmente quando há (houve) tempo de acordar às seis da manhã, a sua pata no meu nariz, o bichano imperioso, eram horas de o conduzir ao prato já cheio de véspera. Mas o pequeno-almoço tinha de ser em companhia...

 

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