Em Pau
Durante horas de comboio foi meu parceiro de conversa muda o rio Gave de Pau. Desde Lourdes nessas confidências entre açudes e rápidos, calhaus agudos e águas espraiadas, aparentemente sossegadas. A viagem terminava, finalmente, sob o coberto da gare e do outro lado da estrada o amparo gratuito do funicular.
Não apetecia mesmo subir a pé a encosta até aos primeiros sintomas da cidade. Em 1906 deve ter ocorrido essa impressão ao funicular que mantem a sua vestimenta de madeira antiga mas já não chia dos cabos, é movido pelo mutismo de um motor eléctrico. No topo o castelo a que de imediato pus cerco, em busca do melhor ângulo para uma fotografia onde ele coubesse.
E depois foi-se ao passeio. Pau, antes do bulício da cidade nova e universitária, industrial talvez, é um monumento à tranquilidade e a memórias diversas como o seu Grande Prémio de Formula I, ganho em 1949 por Fangio num Maserati! (Os corredores do hotelzinho eram pródigos em fotografias dessa época e dos seus ases.) Ora, é certo, Fangio hoje não troa, apenas ecoa como qualquer desses corajosos pioneiros da velocidade de cara ao léu e sem cinto de segurança. Ruazinhas fora, sem ter com quem me esbarrar, comecei por espreitar os Pirenéus no miradouro.
Competentemente coroado de neve e de um fumegante frio que não chegava à cálida Pau. Aqui o sol imperava e é difícil recompor o novelo de artérias por onde andei, o equilibrio arquitectónico com que me deparei.
Entre formas vetustas e outras ousadamente esguias sugerindo serem levadas por tempestades que não testemunhei,
deixei-me ir à deriva e almocei lautamente um estufado de carne bem regado por um branco Chardonnay. O bastante para dispensar o jantar...
Até que algo me chamou a atenção - algo que eu bem conhecia de Portugal, fosse das venerandas mercearias finas, fosse de uma publicação minha de há umas décadas. Adriano Ramos Pinto e os seus vinhos do Porto estavam em Pau!
A Casa Ramos Pinto, resumidamente, foi uma verdadeira inovadora na arte da publicidade, onde misturava a ousadia, a excentricidade e o toque lúbrico que assiste a toda a liturgia de Baco. Chegou mesmo a escandalizar - objectivo alcançado!... - e a figura que eu tinha diante de mim, na fachada do Le Vintage Cafe, era nem mais do que a cópia de um cartaz (confirmei depois) desenhado em Paris por René Vincent, à la belle époque, em exclusivo para os rótulos e reclames Ramos Pinto: o penteadinho e a menina com o cabelo à garçonne bebericando e beijocando-se no mesmo copo que lhes oferecia Cupido...
Gamanço? Se calhar não. A Casa Ramos Pinto foi, ainda no século passado, vendida a uma empresa francesa, às tantas sediada em Pau...