Um piriquito no pombal
Tem o dia todo para dormir com uma orelha acordada, não vá o diabo aparecer, e a noite para remoer a vida desgraçada em que se perde. Correram já três semanas desde que a cróia da vizinha - Perrequito dum raio! Coza-se lá o diabo do home! Perrequito! - E o vermelho a encher-lhe a cara, Perrequito o carago, um home tem de se fazer respeitar, mais a mais o sapateiro da freguesia, não há cá outro da arte. - É Perrequito é?, sua badalhoca! Espera que vês já como elas doem.
Isto na rua, o mulherio à janela chamado pelo alarido, um home tem de se fazer respeitar e foi o tempo de entrar na oficina e voltar com a faca de cortar as solas. Aperreado, treslendo, marinhou pela cróia da vizinha acima e retalhou-lhe para mais de vinte vezes o corpo inteiro. Entre o griteiro dela e de quem assistia e um correr de sangue que nem em maré de matar o porco, chapéu à banda e perna curta, em biquinhos dos pés cavalgou a motorizada e alou-se, que a polícia não tardaria aí.
Pelo caminho a aflição de um lugar seguro onde se esconder. - Há de ser na mata da quinta. - A filha trabalhava lá à jorna e sempre lhe levaria o comer.
Conseguiu mandar-lhe recado. Que dormiria no pombal, escancarado, sem pombas, só o monte duro da merda antiga delas, abandonado entre as mimosas. À noite iria pela poça onde a caseira lavava a roupa, caladinho para não desassossegar os cães, e desenrascava-se com uma pouca de água. Valha a Deus estava-se quase no Verão.
Correram já três semanas e continua esperando que os ânimos cicatrizem, tem medo de aparecer e ser conduzido ao Dr. Juiz. A filha findo o serviço, sempre ligeira, leva-lhe a marmita, um naco de broa e chouriço. Emagreceu mas a cara inchou-lhe, tantos os golpes da navalha da barba à noite, na poça. - Castigo do Senhor! - afiança-lhe a moça. No princípio era como se fossem as bruxas, o piar das corujas na escuridão. Agora afeito, mais teme a cobra de uma dessas tardes entre o mato, mas que tal bicho! Por isso as horas em que o calor aperta são que o mantém alerta a tal visita. E não se distraia e rebole o penedo onde se lembraram de construir o estupor do pombal... Ai dele se os senhores da quinta soubessem o que se estava a passar!...
E o fugaz instante com a filha era o seu noticiário. - Ó pai, vossemecê fique-se mais uns dias. A Ser'Ana anda em conversas com o rapaz da S'Deolinda e diz que esta não quer mais barulho, já veio do hospital e não apresenta queixa, assim a deixem em paz. É esperar e depois vossemecê volta a casa. Mas jure-me aqui que deixa a pinga para sempre!
- Está bem cachopa. Mas se essa cróia me volta a chamar... tu sabes o quê, está cozida comigo, que a leve a vaca que a pariu!