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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

A Adega Gavina

João-Afonso Machado, 14.03.23

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A memória guarda imensas coisas: já vão longe os estaleiros de Vila do Conde, sob a capela de Nossa Senhora do Socorro, de rampa aberta ao Ave. A rua era estreita e contornava a penedia (a capela no topo) e os vidros do carro, se abertos, engoliam todo o resultado da arte e da infrene azáfama dos carpinteiros: o serrim do madeirame, o ruído do cavar das enchós e do vaivém das plainas. No tempo das muitas traineiras em construção  a rolarem pelos toros, obra concluída, até ao rio, baptizadas com uma garrafa de espumante e a benção dos gestos e dizeres do pároco local. Os estaleiros estalavam de gente da faina que, naturalmente, acabava o dia na prodigalidade dos tascos a lavar as gargantas de tanta poeira e a desdizer da sua ingrata vida.

Assim nasceu, ali ao lado, a taberna do Gavina. Em 1953...

As décadas tudo mudaram. Mataram a arte dos carpinteiros e levaram o estaleiro - agora feio, quedo, metalizado - para a margem oposta, em antigos terrenos de aves pernaltas na Azurara. Na banda de cá, repentinou-se um jardim, lugar de devaneio e turismo. Talvez ainda na vida do sr. Abílio Monte, o pai da taberna do Gavina (nome de família perdido, conquanto na minha advocacia no Porto haja tido um cliente com esse apelido...), mas não demoraria a percepção da mina de ouro, o restaurante ao serviço das gentes da praia. Precisamente no sítio dos bagaços de outrora, na primeira quina de quem vem do poente para nascente.

Viu a luz o dito restaurante em 2007 com o nome de Adega Gavina. Casa rija e procurada, que se mantem aberta o ano inteiro.

Lá fui com três amigos e uma almoçarada nesta época estival dos veteranos de Vila do Conde. Enfim, três amigos traduzem uma palração muito além das poucas capacidades do meu espírito. Mas ainda assim não correu mal.

Recebeu-nos o Sr. Gabriel Monte, o actual proprietário e neto do fundador. Escolhe, não escolhe, eu esfomeado - felizmente servido como "entrada" por uma inimitável patanisca de bacalhau - perguntei pelo bife invocando a minha carência de dentes...

Que me sossegasse, era do lombo, era manteiga. Pois então, escolha feita. E o Sr. Gabriel falou com rigor. O bife (uma rara opção minha) foi um regalo. Delicioso! E acompanhado do branco da casa, sem rótulo, proveniente de Amarante, região de transição para o Douro, esperto como o alho, a oferecer-se sempre mais. O leite-creme em açucar queimado rematou o bródio e obrou as minhas pazes com o mundo. Tudo inesquecível!

Mas será de esclarecer, a especialidade da Adega Gavina é o peixe grelhado. E no Verão - o meu inverno vilacondense - o almoço ou o jantar são espécies raras e fugidias, reclamando espera, paciência e resistência. Ou a prévia reserva. Pela parte qe me toca, nada disto tenciono provar. Por isso as minhas futuras visitas apenas até Julho. Para mais um excelente almoço (palração afora) e o mui simpático e atencioso serviço. Obrigado, Sr. Gabriel!

 

Um piriquito no pombal

João-Afonso Machado, 10.03.23

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Tem o dia todo para dormir com uma orelha acordada, não vá o diabo aparecer, e a noite para remoer a vida desgraçada em que se perde. Correram já três semanas desde que a cróia da vizinha - Perrequito dum raio! Coza-se lá o diabo do home! Perrequito! - E o vermelho a encher-lhe a cara, Perrequito o carago, um home tem de se fazer respeitar, mais a mais o sapateiro da freguesia, não há cá outro da arte. - É Perrequito é?, sua badalhoca! Espera que vês já como elas doem.

Isto na rua, o mulherio à janela chamado pelo alarido, um home tem de se fazer respeitar e foi o tempo de entrar na oficina e voltar com a faca de cortar as solas. Aperreado, treslendo, marinhou pela cróia da vizinha acima e retalhou-lhe para mais de vinte vezes o corpo inteiro. Entre o griteiro dela e de quem assistia e um correr de sangue que nem em maré de matar o porco, chapéu à banda e perna curta, em biquinhos dos pés cavalgou a motorizada e alou-se, que a polícia não tardaria aí.

Pelo caminho a aflição de um lugar seguro onde se esconder. - Há de ser na mata da quinta. - A filha trabalhava lá à jorna e sempre lhe levaria o comer.

Conseguiu mandar-lhe recado. Que dormiria no pombal, escancarado, sem pombas, só o monte duro da merda antiga delas, abandonado entre as mimosas. À noite iria pela poça onde a caseira lavava a roupa, caladinho para não desassossegar os cães, e desenrascava-se com uma pouca de água. Valha a Deus estava-se quase no Verão.

Correram já três semanas e continua esperando que os ânimos cicatrizem, tem medo de aparecer e ser conduzido ao Dr. Juiz. A filha findo o serviço, sempre ligeira, leva-lhe a marmita, um naco de broa e chouriço. Emagreceu mas a cara inchou-lhe, tantos os golpes da navalha da barba à noite, na poça. - Castigo do Senhor! - afiança-lhe a moça. No princípio era como se fossem as bruxas, o piar das corujas na escuridão. Agora afeito, mais teme a cobra de uma dessas tardes entre o mato, mas que tal bicho! Por isso as horas em que o calor aperta são que o mantém alerta a tal visita. E não se distraia e rebole o penedo onde se lembraram de construir o estupor do pombal... Ai dele se os senhores da quinta soubessem o que se estava a passar!...

E o fugaz instante com a filha era o seu noticiário. - Ó pai, vossemecê fique-se mais uns dias. A Ser'Ana anda em conversas com o rapaz da S'Deolinda e diz que esta não quer mais barulho, já veio do hospital e não apresenta queixa, assim a deixem em paz. É esperar e depois vossemecê volta a casa. Mas jure-me aqui que deixa a pinga para sempre!

- Está bem cachopa. Mas se essa cróia me volta a chamar... tu sabes o quê, está cozida comigo, que a leve a vaca que a pariu!

 

Em Pau

João-Afonso Machado, 05.03.23

Durante horas de comboio foi meu parceiro de conversa muda o rio Gave de Pau. Desde Lourdes nessas confidências entre açudes e rápidos, calhaus agudos e águas espraiadas, aparentemente sossegadas. A viagem terminava, finalmente, sob o coberto da gare e do outro lado da estrada o amparo gratuito do funicular.

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Não apetecia mesmo subir a pé a encosta até aos primeiros sintomas da cidade. Em 1906 deve ter ocorrido essa impressão ao funicular que mantem a sua vestimenta de madeira antiga mas já não chia dos cabos, é movido pelo mutismo de um motor eléctrico. No topo o castelo a que de imediato pus cerco, em busca do melhor ângulo para uma fotografia onde ele coubesse.

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E depois foi-se ao passeio. Pau, antes do bulício da cidade nova e universitária, industrial talvez, é um monumento à tranquilidade e a memórias diversas como o seu Grande Prémio de Formula I, ganho em 1949 por Fangio num Maserati! (Os corredores do hotelzinho eram pródigos em fotografias dessa época e dos seus ases.) Ora, é certo, Fangio hoje não troa, apenas ecoa como qualquer desses corajosos pioneiros da velocidade de cara ao léu e sem cinto de segurança. Ruazinhas fora, sem ter com quem me esbarrar, comecei por espreitar os Pirenéus no miradouro.

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Competentemente coroado de neve e de um fumegante frio que não chegava à cálida Pau. Aqui o sol imperava e é difícil recompor o novelo de artérias por onde andei, o equilibrio arquitectónico com que me deparei.

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Entre formas vetustas e outras ousadamente esguias sugerindo serem levadas por tempestades que não testemunhei,

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deixei-me ir à deriva e almocei lautamente um estufado de carne bem regado por um branco Chardonnay. O bastante para dispensar o jantar...

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Até que algo me chamou a atenção - algo que eu bem conhecia de Portugal, fosse das venerandas mercearias finas, fosse de uma publicação minha de há umas décadas. Adriano Ramos Pinto e os seus vinhos do Porto estavam em Pau!

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A Casa Ramos Pinto, resumidamente, foi uma verdadeira inovadora na arte da publicidade, onde misturava a ousadia, a excentricidade e o toque lúbrico que assiste a toda a liturgia de Baco. Chegou mesmo a escandalizar - objectivo alcançado!... - e a figura que eu tinha diante de mim, na fachada do Le Vintage Cafe, era nem mais do que a cópia de um cartaz (confirmei depois) desenhado em Paris por René Vincent, à la belle époque, em exclusivo para os rótulos e reclames Ramos Pinto: o penteadinho e a menina com o cabelo à garçonne bebericando e beijocando-se no mesmo copo que lhes oferecia Cupido...

Gamanço? Se calhar não. A Casa Ramos Pinto foi, ainda no século passado, vendida a uma empresa  francesa, às tantas sediada em Pau...