Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 26.04.23

SETE RIOS.JPG

Não estava preparado para isto. Mesmo lembrando aquela vez em que quase morria afogado no Rossio mas fui salvo pelo braço firme da minha tilintante amiga, já a fúria das águas na entrada do Metro me arrastava para as profundezas; e, também, a amável boleia no seu bote até à terra enxuta de Entrecampos...

Desta feita estávamos na José Malhoa depois de mais uma inevitável ida às compras - de um bilhete de autocarro para o Norte. E não sei porque o súbito apetite de ir à Almirante Reis (talvez homenagear a Rainha D. Amélia, não recordo bem). Mas fomos, os dois, no vergastado automóvel da minha amiga (tão loirinha, tão penteada e o interior da sua máquina tão desarrumado!), de muitos e muitos quilómetros andados e uma tecnologia felizmente algo primitiva. Por Lisboa fora, essa Lisboa que eu já não conheço e fervilha de trotinetes.

Nem a minha amiga se sentia à vontade nestas avenidas. E, decerto desorientada, rapa do telemóvel, vai ao Google Maps, um olho no tráfego, o outro no aparelho, volta à esquerda, volta à direita, os dedos já não chegavam para os piscas e o buzinão em redor tornara-se infernal. A morte não andaria longe e eu, transido, revi mentalmente se informara a família das minhas últimas vontades mais indispensáveis.

Por isso não perguntem pela Praça de Espanha ou por outro lugar qualquer. Só recordo a travagem chiadora num sinal vermelho, o telemóvel a saltar-lhe da mão e eu muito lesto a apanhá-lo e a abrir a janela - Sr. Agente, como se vai para o Martim Moniz? - Pró Martim Moniz? Mas você está no Martim Moniz, amigo!

Não, não conhecia aquele Martim Moniz. O outro era sujo, fedorento, desarranjado, cheio de sorrisos africanos ou orientais e de estatuetas em madeira ou brinquedos com luzinhas e sem garantia. E mais não digo desse ambiente, que ainda me cai a Constituição da República em cima, aberta no artigo da xenofobia.

Mas no meu Martim Moniz falava-se português, por vezes excessivamente vernáculo. E no actual Martim Moniz abusa-se do inglês, - oh! delícia das pulseiras da minha amiga! - e francês, espanhol, alemão... Sendo os piores de todos, em semelhante invasão, os camones. Com a minha amiga sempre insistindo que se sente apalpada pelos seus olhares e eu sem vontade alguma de intervir...

 

Juromenha

João-Afonso Machado, 21.04.23

Corriam horas de contemplação neste rebordo do fim do mundo. Do outro lado do Guadiana, um Lethes trinado pelas cores dos pintassilgos, era o que fomos e esquecemos, era Espanha já. Porque foi um naco de Portugal ingloriamente perdido - roubado e jamais devolvido, esquecido, chamado Vila Real, outrora deste extinto concelho de Juromenha. Falo de uma aldeiazinha tão silenciosa como eu, ainda incrédula de olhos postos no berço português, toda ela à vista, acenando por nós. E seriam de barco - se o barqueiro não faltasse - vinte minutos para um pouco mais de portugalidade na infinitude da região. Mas a lancha dormia preguiçosa no ancoradouro e o abraço falado na nossa língua foi um aborto, que a estrada cobrava-nos 60 km na ida, e outros tantos de regresso.

IMG_7435.JPG

Olhar, olhar, olhar, viver do olhar...

Assim ali ficámos, magicando os mouros que D. Afonso Henriques levou à sua frente e os espanhois cobiçosos até serem triunfantes.  Todos, no curso da História, a acossarem a velha fortaleza de Juromenha, agora fechada para obras. Por mais um ano - explicaram os de lá. E do outro lado uma terra fértil, a rir da nossa gente, algo que me farta, porquê a nossa indiferença pelo que vai além do Litoral? Mais a mais sendo o Alqueva obra nacional, nossa, espraiada ante a minha contemplação?

Desci ao rio que cheira a pesca - carpos, barbos - e tresanda de apetite por esse gostinho meu.

IMG_7432.JPG

Confesso, era o meu baptismo de Juromenha. Não sei como não ficar prisioneiro da nossa paisagem... Dessa nossa riqueza, a voltar a cana e o carreto virão armados, sorvo do meu Reino o que ele me oferece... Mas decerto chegarei tarde: o metro quadrado atinge ali preços exorbitantes - fora do meu poder - que as águas, a paisagem, a tranquilidade e o desporto na barragem já mais não consentem. Resta o passeio

IMG_7430.JPG

e o direito ao passeio e ao sonho, que esse ninguém mo tira. Um dia visitar finalmente a fortaleza, encher os pulmões de bons ares, das estrelas à noite e do coachar das rãs nas margens do Guadiana... Um homem sem terra não precisará de mais...

IMG_7427.JPG

Os espanhois, ávidos do nosso bom comer, depois do antes, conquistam agora os restaurantes de Juromenha. Sinal da imortal vitoria da gastronomia lusa! Assim vai o Alentejo,  diz este alentejano por via materna. E dizia o meu querido Tio mais velho, nascido em Borba, - Prostituindo-se! - Não chegarei tão longe. Certo é, porém, a deixar-se aliciar, consentindo uma diplomática e eficaz invasão, perdendo a sua independência em meandros da maior finesse

Foi porque não determinei, no instante, os meus ossos ficassem em Juromenha

IMG_7428.JPG

repousando naquele cantinho sobre a magnificência das águas, em espírito a Eternidade pescando nas noites de luar galopadas pelas colossais carpas, pelos imensos barbos do Guadiana. Não, contudo, - que algum dia os enfiariam numa comandita de mesclados restos mortais e eu sempre me dei mal no meio da multidão...

 

O fantasma

João-Afonso Machado, 17.04.23

IMG_7510.JPG

A minha meninice, a caminho do período estival, passava sempre por esses escombros sem vidraças nem cor, mortos na berma da estrada. - É uma casa assombrada! - exclamávamos nós, de olhar pregado naquele cadáver ainda quase hirto. Uma carnificina de plantas bravias sugava-o até às telhas que se desprendiam, e a torre seria um viveiro de morcegos - de vampiros, aumentava eu e a minha trupe de irmãos, quase assustados pelo imagem da partida nocturna de um sem-fim de almas penadas esvoaçando entre os brasis de outrora e a pobre povoação de Rio Mau. Sinistramente.

Foram anos a fio. Até que num já imemorial Verão deparámos com o edifício ressuscitado, todo muito cor-de-rosa. E bem ajardinado. Algo sucedera!

Viemos a saber depois, a vontade de o adquirir incluia, de longa data, bastos interessados (na casa e nos seus terrenos agrícolas entregues a um caseiro) logo debandando ao ouvir estranhos e inexplicáveis ruídos que, na terreóla, haviam criado a sua fama de casa possuida pelo Diabo. Até ao dia em que alguém, mais afoito, decidiu investigar.

E as conclusões não tardaram. Era o caseiro, absolutamente interessado apenas na sua lavoura, que produzia tão assustadores barulhos. Um novo dono e patrão é que jamais! Como a vida lhe corria, nem renda pagava... Assim lhe valiam os "fantasmas".

Nunca cheguei a apurar quem foi o valente e persistente. Mas o certo é que a tramoia do caseiro de Rio Mau foi desmontada. E ponto final. O homem seguiu a sua vida, evaporaram-se as ditas avantesmas e também os dias voltaram a nascer solarengos na Villa Figueira,  já recomposta e de portas abertas ao destemor e aos novos proprietários. E assim permanece, espreitando o trânsito (que na canícula vai além dos limites...), não longe das praias. A saborear os seus jardins, a quietude do lado de lá dos seus muros. Com certeza sem a assombração do velho caseiro de então.

 

(Para o Ministério do Rocambolesco, o desafio da Ana de Deus - https://rainyday.blogs.sapo.pt/tag/o+minist%C3%A9rio+do+rocambolesco)

 

Pág. 1/3