Ançã
Não consigo mesmo lembrar por que razão essa noite de há muitos anos fui a Ançã, recebido pela silenciosa claridade de estearina que brotava das suas paredes nuas.
Havia um largo e quase tudo era calcário. Ou melhor - a célebre pedra de Ançã, de fácil lapidar, matéria-prima dos muitos rendilhados do Mosteiro da Batalha e chamariz a esta vila - que já foi sede de concelho e hoje obedece a Cantanhede - de João de Ruão e outros grandes nomes da arquitectura nacional.
Agora voltei lá, cheguei ainda no fresco matinal de um domingo, recebido por mui amáveis "bons-dias" de quantos se cruzavam comigo nas ruas. Mais telhuda, somente a vendedora do bolo de Ançã (uma espécie de folar bairradino), irritada com não sei o quê, mesmo tendo-lhe eu comprado um que foi decrescendo aos nacos o dia todo.
Nestes andares começa-se geralmente do centro para a periferia, admiram-se casas bonitas, a Matriz, o pelourinho
e todos os sintomas de que a vida ali conheceu outrora momentos de maior grandeza. Mas depois há o encanto dos pormenores
e as valias pelas quais cada terra se sobrepõe às restantes. Em Ançã o grande tesouro é a água - a água que nasce torrencialmente de dentro da própria vila.
A Fonte de Ançã debita um caudal superior a 20.000 litros por minuto!
Água cristalina e imparável, logo profunda à saída do ventre, quase um milagre. Toda a atenção celestial e terrena ali se concentra, há uma ponte, há uma capela ao lado da ponte,
os caleiros sucedem-se sempre remexidos,
aí vão eles para o moínho, são várias as construções bebendo todas da mesma santa água
que ainda aleita uma descomunal piscina
agoirentamente parecendo finar-se na secura (pelo menos estival) de um córrego triste, sugado até ao tutano, oriundo dos altos da vila, caído exangue mesmo sob a ponte...
Evidentemente o forasteiro já marcou Ançã no mapa com a unha gulosa. O alojamento para turistas abunda e a preços de gente grande. Assim é mais complicado, conquanto parece me deixem trazer também a velha Mécia...