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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

"Je T'aime Moi Non Plus"

João-Afonso Machado, 17.07.23

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Morreu Jane Birkin. Ontem, ainda a tempo de se encontrar com Serge Gainsbourg, já estarão os dois na rapioca, de certeza, lembrando aqueles saudosos idos da minha primeira "festa de dança". Na quinta de um amigo e colega de estudo, a mesa do lanche carregada de Sumol e croissants e a irmã mais velha dele, rapariga viajada, aparecendo e emprestando um single sem capa e muito causador de excitação. - É o Je T'aime! É o Je T'aime! - gritava e pulava a rapaziada. Eu não sabia quem era o Je T'aime mas, para não ficar atrás, - É o Je T'aime! É o Je T'aime! - em coro também.

A venda do disco era então proibida em Portugal e (a minha querida Mãe nem sonhou, eu nos doze anitos...) foram empolgantes os meus primeiros slows com a minha Esmeralda... Jane Birkin era linda - constatei depois - e tinha umas pernas maravilhosas. Andaria talvez uns dez anos à minha frente.

Muito tempo depois dei por ela cartaz na Casa da Música do Porto. Vinha cantar Gainsbourg que morrera já. A ideia de ouvir ao vivo o célebre Je T'aime Moi Non Plus fez-me nem hesitar: comprei o bilhete que esqueceu-se de me recordar quando foi o espectáculo - possivelmente em 2005 ou 2006.

O Je T'aime é que ficou na gaveta. Ou por falta insubstituível do autor, ou porque ia lá longe aquela voz teenager  ou por mera cautela, não viesse a Sala Suggia abaixo.

Mas Jane Birkin, de microfone na mão, percorreu todas as filas de cadeiras de ponta a ponta, piscando o olho, sorrindo, chuando beijinhos. Tocou-me no braço, fez ar simpático... Ce qui nos intéresse dix ans à l'avance, Jane?

E teria sido tudo o que fosse para ser...

Agora (a notícia impressionou-me) Jane Birkin partiu deixando para sempre a sua passagem pelo meu assento. Que descanse em paz; ou melhor, que se divirta em paz e mande daqui um abraço ao Serge, um bom rapaz afinal. 

 

Julho lunar

João-Afonso Machado, 15.07.23

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Era um rato-do-campo sobre o folhedo pardacento do Outuno ainda por chegar. Saíra agora mesmo da toca, algo esparvoado, o relógio sem dar horas e o seu olhar inteiro, quase metade dele todo, espreitando a medo o decerto armadilhado silêncio.

Queria o ratito saber, na sua erudita fragilidade, que males acossariam o sissiar das palavras, as garras ou os dentes afiados das proposições, o hipnotizante bamboleio da poesia? Porventura perigosas, traiçoeiras, letais, mas... onde pararia toda a gente, o manancial das sementes de que se alimentava?

Nesse labirinto gramatical reconsiderou a periculosidade das cercanias que se lhe apresentavam desoladas e desertas. Outrora povoadas de felinos e águias, de serpentes e de cães impiedosos. Mas todos visiveis e previsiveis, perdendo para a sua corridinha, para a leveza das suas patas rabiscando o solo. Certo era, apercebeu-se o ratito, o mundo acabara, pelo menos provisoriamente.

E como se de súbito sozinho, a desgravitar no sufoco lunar, de um pulo refugiou-se Julho adentro no ninho. 

 

Ançã

João-Afonso Machado, 10.07.23

Não consigo mesmo lembrar por que razão essa noite de há muitos anos fui a Ançã, recebido pela silenciosa claridade de estearina que brotava das suas paredes nuas.

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Havia um largo e quase tudo era calcário. Ou melhor - a célebre pedra de Ançã, de fácil lapidar, matéria-prima dos muitos rendilhados do Mosteiro da Batalha e chamariz a esta vila - que já foi sede de concelho e hoje obedece a Cantanhede - de João de Ruão e outros grandes nomes da arquitectura nacional.

Agora voltei lá, cheguei ainda no fresco matinal de um domingo, recebido por mui amáveis "bons-dias" de quantos se cruzavam comigo nas ruas. Mais telhuda, somente a vendedora do bolo de Ançã (uma espécie de folar bairradino), irritada com não sei o quê, mesmo tendo-lhe eu comprado um que foi decrescendo aos nacos o dia todo. 

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Nestes andares começa-se geralmente do centro para a periferia, admiram-se casas bonitas, a Matriz, o pelourinho

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e todos os sintomas de que a vida ali conheceu outrora momentos de maior grandeza. Mas depois há o encanto dos pormenores

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e as valias pelas quais cada terra se sobrepõe às restantes. Em Ançã o grande tesouro é a água - a água que nasce torrencialmente de dentro da própria vila.

A Fonte de Ançã debita um caudal superior a 20.000 litros por minuto!

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Água cristalina e imparável, logo profunda à saída do ventre, quase um milagre. Toda a atenção celestial e terrena ali se concentra, há uma ponte, há uma capela ao lado da ponte,

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os caleiros sucedem-se sempre remexidos,

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aí vão eles para o moínho, são várias as construções bebendo todas da mesma santa água

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que ainda aleita uma descomunal piscina

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agoirentamente parecendo finar-se na secura (pelo menos estival) de um córrego triste, sugado até ao tutano, oriundo dos altos da vila, caído exangue mesmo sob a ponte...

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Evidentemente o forasteiro já marcou Ançã no mapa com a unha gulosa. O alojamento para turistas abunda e a preços de gente grande. Assim é mais complicado, conquanto parece me deixem trazer também a velha Mécia...