Gafanha da Nazaré (porto bacalhoeiro)
Conheço-o há muitos anos e sempre sabendo do seu infortunio depois de tantas aventuras narradas, agora que o amarraram pelas narinas nesta masmorra a céu aberto. Foi veleiro a dar muitas voltas ao mundo, bacalhoeiro ágil e exímio. Se já não tem nome, só a ferrugem que lhe comeu a tinta o devorou também.
E enganaram-no. Quem o comprou e o fundeou no Porto Bacalhoeiro da Gafanha da Nazaré, e proclamou recuperá-lo, devolvê-lo já não talvez à faina da pesca ao longe, mas ao orgulho do seu velame ao vento a soprá-lo oceanos além, a quantos quisessem ouvir esses sons velejantes e ir, ir, ir, que o planeta é o verbo ir.
São por isso de inconformismo as minhas frequentes peregrinações à Gafanha da Nazaré. Tudo é igual menos esse menos adoptado que a salinidade vai roendo. No resto,
os grandes armazéns de retém do pescado lá continuam entre os odores a maresia e do peixe descarregado que enchem por completo o ambiente local.
O cais é uma fila longa de navios encostados. Em alguns, formigas humanas distinguem-se nas amuradas ou ao longos dos convéses. Não lhes falta cor nem proa fininha a rasgar a ondulação, até onde quer que lancem as redes e tragam na sofreguidão do seu arrasto quantas toneladas a empobrecer o "mar salgado" de Pessoa pela rampa das suas popas.
Há-os ainda maltratados por tanto labor, quase como se não tivessem direito a uma lata de óleo para lhes untar a maquinaria. Nem uma simples colher de mel sobre as engrenagens...
E a gente a bordo em torno deles, o circo é Ílhavo, um inferno, a capital portuguesa do bacalhau. Dura, implacável e prenha dos estalidos dos chicotes. A estalar dos impávidos armazéns nas cercanias.
À margem do drama as gaivotas debicam o peixinho miúdo, mergulhando a pique na maré baixa.
E no bairrinho da doca o bando de patos brinca, vai em fila. Nem um voo lhes apetece...
Na outra margem, de rabo voltado para as águas, mais embarcações de bom calibre, estranhamente a parecer querer lhes lavem as partes.
Talvez seja da nortada, hoje muito inspirada. Mas aquele veleiro ancião de quatro mastros navega o meu espírito ainda de madeirame branco e dourado, fechos polidos nas portas das cabines. Tudo reluzindo. E o pano enfunando barra fora, um comandante, o imediato, a marinhagem... e eu. Eu fazendo não sei bem o quê além de aspirar os ares, blusão vestido (ou somente t-shirt, aspirando impressionar a tripulação...), aspirando sempre colher à mão a linha do horizonte. É, eu a bordo, eternamente um aspirante...