Ir ao mar na Leirosa
As minhas tias o mês todo na varanda frente à praia, como lagartos ao sol, escondidas atrás de um paravento. E nós por ali.
Descia-se ao areal por uma pouco recomendável escada de pau nascida numa cerca velha, escangalhada, que delimitava a rua. O mar incutia o maior respeito e as companhas só dispunham de remos, cada barco tripulado por mais de vinte homens audazes e um arrais frio e capaz de conter os medos. Mas era do que aquela gente vivia... No regresso da faina, quatro juntas de bois puxavam as redes ao longo de muitas horas e muita, muitísima. varapauzada. Fazia dó. Por isso se encontrava de tudo na areia: bosta dos animais, peixito miúdo caído das redes dos dias anteriores, uns vidros...; o que escasseava era um lugar para sossegadamente se estender a toalha.
A gente ia fumar para outras bandas e só galopava até à velha cerca ouvindo o berreiro do mulherio - Ai o meu home! Ai o meu home que o mar o leva! Valei-lhe Senhora do Céu! - E o espectáculo do mar embravecido atraía e assustava, filme empolgante e tremendo dum barco sem conseguir ultrapassar a rebentação das ondas, cheio como um ovo, ora erguido a pique pela proa, ora atravessando-se nos vagalhões, ora vindo para trás como se fosse de papel. E depois nova surtida e muito bagaço no fim para sossegar os corações...
Coisas que já passaram. A Leirosa tem hoje todas as suas ruas asfaltadas, há restaurantes, cafés, mercados e o sempiterno cheirinho a sardinha assada nas grelhas à porta das casas. Tem uns pontões que ralham ao mar mau e um areal fabuloso onde cabem todos porque (quase) ninguém o frequenta.
Também tem uma fábrica ignobilmente monumental mas a empregadora daquela gente toda... E contra isso...
Ainda assim a arte xávega prossegue. Estamos muito perto da Figueira da Foz, a modernidade acordou e substituiu os bois pelos tractores e os remos pelos motores. Já os barcos circulam na areia em atrelados, em vez de escorregarem em toros arredondados.
Eu gosto de ver a Leirosa cá de fora, do mar.
Por isso embarquei com o arrais, três ajudantes e um, aliás simpático, galego de Vigo. É difícil fotografar à proa por causa do balanço
e são muitas as prudentes recomendações para nos segurarmos. Mas as águas hoje estavam tranquilizadoramente chãs, foi um passeio bonito, com vagares para conversa: um dos tripulantes era filho do arrais do Mestre Casca, que conheci há décadas e me inspirou um conto de navalhadas.
Foram lançadas as redes
e o tractor puxou-nos para terra na primeira onda que nos deu boleia.
O Estrela do Mar da Leirosa, o barco dos irmãos Leal, ia descansar, enfim.
Depois começou o arrasto, o cordame enrolado por força da tracção dos motores.
Avistando-se as primeiras malhas, a multidão precipitou-se para a areia molhada a saber as novidades; que eram muito carapau e algumas lulas.
Nos ares os piares esfaimados das gaivotas. E logo os cabazes se encheram e foram levados para a lota no cimo da praia.
Gosto disto. Aqui ponho as ideias em dia com velhos amigos de antigamente. Já não consigo localizar o ermo dos acampamentos de outrora, envelhecemos, é certo, e muitos já faltam. O Farol fechou, acabou a sardinha na telha... Há um bairro novo, foi embora aquela santa quietude de aldeia piscatória. Mas enquanto o barco não fugir da Leirosa, nem aquele areal tão longe de tudo e todos, o meu coração para lá me impele a rebobinar os anos.