Navegando de S. Jorge à Graciosa
A partida foi pontual, manhã cedo. A dúvida da véspera era sobre a ondulação marítima, uma dúvida maldosa que se estendia à realização da viagem. Aliás chuviscava, o nevoeiro escondia bocados consideráveis das falésias e o vento de hoje contrastava com a quietude de ontem. Mas o ferry fez-se ao mar sem hesitações e muita gente a bordo.
(Viera para as ilhas com uns Contos de Vergilio Ferreira e depois percebi porquê, quando li o autor preconizar «acontecesse, enfim, naquela manhã absoluta, qualquer coisa humana e íntima mais forte do que o silêncio e a ameaça».)
Deixar a terra para trás custa. Porque pela frente já só a submersão ou o destino. Todas as fichas tinham ido a jogo nas Velas (S. Jorge) e a aposta era a Graciosa. Através de águas mansas ou bravas, no curso de duas horas e meia e do sonho das baleias. E ante tantas interrogações eu passara a noite «ladrando furiosamente, como um rancor de cães ao tronco de uma árvore por onde a presa fugira» (V. Ferreira, uma vez mais).
Prisioneiros do oceano eram agora os nautas apontados à Graciosa, assistindo ao afastar da pétrea boia de S. Jorge.
O ferry tomou a direcção do poente, ainda protegido por aquele molosso, mas vencida a Ponta dos Rosais
foi o assobio à solta em que o vento se excomungou, mais o embate das ondas sempre e sempre e sempre. Muitos agasalhos em meu redor como quem se entretem com os dislates das gaivotas enquanto as baleias não ressuscitavam das águas.
Um frio imaginário. A máquina fotográfica em riste, o polo apenas no calor da expectativa, à ré, contando o tempo de um retrato impossível do dragão em toda a sua amplitude. Ajudou o nevoeiro, encobrindo a cauda a nascente...
Depois S. Jorge esfumou-se em sombras cada vez mais ténues. A ondulação tornou-se um hábito, os passageiros esqueceram o medo de se sentarem e somente duas ou três câmaras fotográficas vasculhavam o horizonte. Quanto mais a esperança nas baleias se afastava, mais se aproximava a imensidão do mar, o sentido de uma formiga perdida no cosmos. Os quartos-de-hora remavam sempre mais depressa... Assim foi que, de súbito, ladeávamos a Graciosa a bombordo e passámos a Baia da Engrade incrustada nos montes.
E vieram também os picos rochosos nascidos não se sabe de onde, personagens de dramas antigos, madeira quebrada contra eles, caravelas a pique, vozes e pânicos que ainda ecoam.
A amansar, o ilhéu da Praia. Já dono das suas ervas, decerto das suas posturas de ovos, de lagartos gulosos, do grasnar das aves. Lugar visitável.
E a embarcação ia-se comedindo. A Praia, freguesia, à vista. Ou seja, o porto dito da Rochela. Ou o término da viagem. Nem o mundo nem o tempo nos couberam nos bolsos, muito menos as baleias ao alcance das objectivas. Mar crespo, cinzento, não seria o dia delas...
E no desembarque o vagar apenas para um retrato da praia da Praia (tanina, mas «uma certeza tão presente em todo o seu corpo, que era quase como se tivesse um destino» - V. Ferreira, ainda na ordem do dia),
sobre a qual vale a pena estudar e meditar todos os seus prós e contras...