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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Santo Antero

João-Afonso Machado, 28.10.23

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Está sentado na outra ponta do banco e anoitece-lhe a vida. Recordo-o dos tempos da Universidade, sob o luar que luminava a Sé, invectivando os Céus, de braços furiosos no ar, Deus se existisse que o fulminasse com um raio, ali mesmo. Ímpia demência ruiva dos seus cabelos, da sua barba! E ouvi depois do seu duelo na Arca d'Água, da tipografia em Paris e dos anos farejando o sossego nas dunas de Vila do Conde, antes do regresso exaltado à frente da batalha da Liga Patriótica do Norte... 

Ultimamente tutorava as duas filhitas do inditoso Germano Meireles. E agora encontro-o aqui em Ponta Delgada, não aparentando a heresia nem o seu nihilismo professo; também não a paz nirvânica que nunca deve ter alcançado...

Antero de Quental! O Santo Antero, assim lhe chamava o José Maria. O poeta e o filósofo cujas páginas, dizia o Oliveira Martins, foram todas escritas «com sangue e lágrimas»!

E bem se vê. Melhor se pressente o místico e metafísico incapaz de se acomodar num sistema coerente para onde caminhem o Universo e a Humanidade. Não, é evidente, as ideias em Antero maceram-lhe o corpo e a alma, é com a sua própria consciência que ele discute, não se conforma, desespera e tira o revólver da algibeira.

***

Estremeço ante o disparo. Jamais o esquecerei, nada podendo fazer para contrariar a História. Estou lá, no Campo de S. Francisco, no seu banco fatal... Mas junto do corpo de Antero, ainda a vida não fugira completamente, segredo-lhe umas estrofes suas, para que as leve na viagem - «Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:/Se um momento a prendeu mortal beleza/É pela eterna Pátria que aspira...».

 

Telhados de Roma

João-Afonso Machado, 24.10.23

Era uma vez uma ignota porta de entrada no Vaticano. Essa entrada, porém, tinha um nome comprido, - Compagnia di Gesú, Curia Generalizia - e abria-se a mistérios no silêncio da História, vão lá estudá-los, aos mistérios e à História, nesse silêncio e na certeza de que o anfitreão é um sacerdote português. Vão bem encaminhados os curiosos!

Assim entrámos. E antes de episódios mais espirituais fomos conduzidos ao terraço de cobertura, de braços abertos na Redenção de Roma, diante nós, aos nossos pés. Com a máquina fotográfica infrene.

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Onde poisar os olhos? Talvez logo diante, no monumental Castelo de Sant'Angelo, a grandeza eregida em torno do sepulcro do Imperador Adriano. Mas o sapientíssimo eclesiasta disparou em plúrimas referências que a memória e o lápis não abarcaram. Ficaram Cristo e algumas edificações dos escritórios da Cristandade.

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E pontos desconexos: o Hospital do Espírito Santo, em vestígios da sua menor idade,

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cúpulas da Roma "eterna", telhados sem fim de templos e casario, humanos sinais do quotidiano (para os do "copo meio vazio"),

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e o Tibre que um dia antigo foi rio e fonte de vida

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em uma e outra margem sua.

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Mais o Panteão de Victor Emanuel, erigido com a pompa caseira de um "bolo de noiva",

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desditoso, mais pomposo cognome não logrou no mundo todo...

E por fim a Basílica de S. Pedro! O coração do Vaticano. E o grande fosso das crenças: de um lado, somente, a pedra exuberante lavrada; do outro a plurissecularidade da Fé, toda uma civilização que ainda (e sempre) irradia luz.

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São factos, nem sequer a devoção. Porque ali na cobertura da casa-mãe dos Jesuitas eram só factos e Roma, a polis que não me enche a alma mas a alma da minha polis. Da circunstância em que nasci e vou morrer.

 

Carta de uma gaivota romana

João-Afonso Machado, 19.10.23

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Minha estimada companheira:

Que os céus, aí por Portugal, sejam a sua liberdade, e a paparoquinha sempre abundante é o que mais lhe deseja esta sua amiga que não a esquece nem àquela tremenda tempestade em cujos ventos nos separámos para tão longe.

Vai esta por bico de confiança, o de uma outra companheira que se dispõe a atravessar o Mediterrâneo e fixar-se nas suas Berlengas, por recomendação médica de peixe, só peixe, na sua dieta.

Ora cá para as nossas bandas é cada vez mais uma raridade esse pitéu. Eu há dois ou três invernos que me deixo estar em Roma. Mas o Tibre, o rio da cidade, é tão pobrezinho quão porcalhão. A amiga sabe como é: onde não houver pescadores não há peixe nem as apetecíveis sobras das pescarias. São vinte quilómetros de voo cansativo até ao litoral, onde a festa é chocha e muda, ida que foi a música dos cardumes.

Assim me remedeio, - entre turistas glutões. Podia ser pior. Mas ninguém me quer mal e a troco de alguma altivez e pose (sabe Deus às vezes com que dores nas articulações...) e da proximidade que eles gostam, são muitos os pedaços de pizza e biscotti oferecidos. E há ainda os desperdícios dos restaurantes, tudo o que o desmazelo dos humanos lança para o meio da rua, tantas licheiras mais!

Já não tornarei ao Portugal da minha vida, a idade tolhe-me as asas. Não mais ensaiaremos esbarrarmos-nos nesses ares que muito choro, tal o seu azul no meu coração. Mas não me despedirei da minha amiga sem lhe prometer todo o apoio no dia em que se entusiasme a voar até estes lugares. Já se imaginou planando rente ao automóvel do Papa dos humanos, ou gozando o solzinho na cúpula de qualquer basílica? Quem é o Papa, o que são basílicas? Tudo isso lhe contarei então, de bom grado. Venha, venha, que eu cá a espero. Enquanto não, receba a querida amiga um apert'alado abraço meu que lhe envio deste merlão na

Ponte Humberto I - Set.07.

 

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