Santo Antero
Está sentado na outra ponta do banco e anoitece-lhe a vida. Recordo-o dos tempos da Universidade, sob o luar que luminava a Sé, invectivando os Céus, de braços furiosos no ar, Deus se existisse que o fulminasse com um raio, ali mesmo. Ímpia demência ruiva dos seus cabelos, da sua barba! E ouvi depois do seu duelo na Arca d'Água, da tipografia em Paris e dos anos farejando o sossego nas dunas de Vila do Conde, antes do regresso exaltado à frente da batalha da Liga Patriótica do Norte...
Ultimamente tutorava as duas filhitas do inditoso Germano Meireles. E agora encontro-o aqui em Ponta Delgada, não aparentando a heresia nem o seu nihilismo professo; também não a paz nirvânica que nunca deve ter alcançado...
Antero de Quental! O Santo Antero, assim lhe chamava o José Maria. O poeta e o filósofo cujas páginas, dizia o Oliveira Martins, foram todas escritas «com sangue e lágrimas»!
E bem se vê. Melhor se pressente o místico e metafísico incapaz de se acomodar num sistema coerente para onde caminhem o Universo e a Humanidade. Não, é evidente, as ideias em Antero maceram-lhe o corpo e a alma, é com a sua própria consciência que ele discute, não se conforma, desespera e tira o revólver da algibeira.
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Estremeço ante o disparo. Jamais o esquecerei, nada podendo fazer para contrariar a História. Estou lá, no Campo de S. Francisco, no seu banco fatal... Mas junto do corpo de Antero, ainda a vida não fugira completamente, segredo-lhe umas estrofes suas, para que as leve na viagem - «Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:/Se um momento a prendeu mortal beleza/É pela eterna Pátria que aspira...».