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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Vésperas...

João-Afonso Machado, 28.11.23

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Venho de muito longe em caminhos destas botas que aleijam, e sangram em mim as saudades da terra corrida sem pedras no couce do arado.

O Fidalgo foi-me buscar ao meu coberto. Que viesse, era uma ordem, trouxesse o bornal e que comer - um naco de broa, um pedaço de toucinho, íamos por El-Rei. E como eu também o Bastião e o Silvestre...

A Mulher chorou - Cala-te mulher! De que nos vale chorar? - E pus à cinta a funda e o cutelo guardado na arca do meu Pai Vicente, que Deus tem.

A hoste do concelho reuniu com gente de monta. Marchámos a pé, já perdi a conta aos dias. Nas cavalgaduras apenas os fidalgos em reluzentes armaduras. A mim coube em sorte um gibão pregueado em ferros e um pique sempre a roçagar as ramagens. Marchámos, marchámos, de ataduras dos joelhos para baixo, um casco ferrugento, amolgado, a macerar-me a testa.

Pois prá'qui estamos agora, a bem dizer iluminados pelo fogo do cerco ao castelo. Quase todos os dias são chamados muitos, e  muito poucos voltam. Ele são as escadas e os arietes trepando o monte, e os berreiro e os urrros, o pavor dos padecentes debaixo do pez fervente e dos pedregulhos lançandos das ameias. Há quem nem pie - os cortados por frechas e virotões, felizardos... E a cavalaria não avança, carece de espaço, estamos como estávamos, as portas sempre rijas da muralha e o trabalho impossível dos peões sem nome.

Diz que amanhã, ou depois, nos toca a vez. Então lá iremos, o Bastião, o Silvestre e eu, João filho de Vicente, e os outros todos. Quantos de nós hão de regressar para voltar?

Espreito o castelo e o medo passa-me ao lado. Se havemos de morrer de fome ou da peste, caindo aos pedaços, porque não morrermos lapidados, agarrados ao pique? Que outra escolha para nós? Do pez ou do azeite a escaldar, dos calhaus, pode o Senhor até compadecer-se mas ...

... viver a pensar em morrer é que não adianta. Tenho acaso uns trinta anos e choro só os dois filhitos que ficaram entregues à mãe... Saudades de um pai levado pela sorte em que nasceu.

 

"Ainda O'Neill"

João-Afonso Machado, 25.11.23

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Rapazinho nasceste entre picos

fundos ou superficiais, todos muito dores

na história burguesa de saltaricos

ora pouco ora mais zangados de amores

bestas ou bestiais.

 

Rapazinho por minha encomenda

salafrário estúpido sem emenda nasceste ursinho de peluche

rapazinho coqueluche.

 

E é só patranha o teu nome balsâmico

cheio de manha, cheio de Nilo

(tão lá de matar o crocodilo),

 

pobre pobre Peter Pânico.

 

Escritos da Papermate do Avô

João-Afonso Machado, 19.11.23

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A moderníssima esferográfica do Avô (esses instrumentos do Avô naturalmente ficaram em mãos de quem os utiliza), vestida de azul correndo no papel o espaço enorme a que o mundo pertence, contornou à cautela a multidão. E assim evitou a esquizofrenia ululante. Tal qual o Avô desprezava o berreiro e dele fugia a sete pés.

(O Avô escrevia escorreitamente, assertivamente, jamais alinhou em manifestos e tinha por péssimos os lugares-comuns... Pior do que estes só a pretensa originalidade...)

Pois a herdada esferográfica, utensílio corrente, passou ao lado dessa gente que faz por ser notada, e grita, brame, pula, acusa e diz-se vítima. A multidão forma-se geralmente sob o pretexto da incomprensão. Mas tudo registou, perspicaz, a esferográfica. Implacável e dada a pormenores, imune a escritas borradas - talvez em lágrimas pingantes da tinta do tinteiro... Coisas mais literárias...

É de crer - ó Papermate! - vais tu  (mas quem?) rasgando o papel em fúria incontida ou a dar furiosa na prosápia dos oradores de ocasião, pretensos inovadores na escrita, auto-apelidados ídolos das multidões.

As multidões... Ou a mentira prevalecente já no tempo da Papermate do Avô, esta pela verdade da Verdade. Contra os loiros beijinhos que tapam o sol com a peneira. Sempre asséptica, a Papermate do Avô... Mas, certamente senhora da sabedoria, essa relativa expressão na escrita livresca. E íntima de Thémis, por isso inteiramente capaz de julgar em justiça, - o ser literário não é um esforço de vontade, uma vocação treinada com halteres; é somente a natureza do detentor da esferográfica. Nada se inventa, nada se força: ou há naturalidade ou a cópia é descarada e de falsa qualidade.

Chegarão os rabiscos da Papermate ao destino devido?

Provavelmente não. Mas isso conta pouco e serve apenas o barómetro do blog. Thémis é presente e um homem vale por si, nem que haja propagado sangue iníquo. Até sabendo que o caminho é doloroso, Thémis mantem a balança e o destino aos deuses cabe decidir!

Mas sempre como o Avô: escrevendo fora, e longe da multidão, uma escrita clássica e despretensiosa, à margem da moda, somente com a Papermate a dar eco à alma.

 

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