Catacumbas de S. Calisto
Roma, algures perto dos ecos da Via Apia. Terras planas e enganosas, de edificação impossível sobre os seus mistérios escondidos - no subsolo esburacado da História dos primeiros cristãos, da sua clandestinidade. Foi a visita desse dia em que se narraram dezenas e dezenas de quilómetros abaixo da superfície, preenchidos por túmulos e lugares de culto e de uma luz, que despontava aqui e acolá, por janelos virados ao sol, e não sei exactamente de onde mais - de uma força enorme que nos impelia àquele testemunho da Antiguidade.
Era proibido fotografar. Transgredi. Deus me perdoará as imagens que trouxe na alma. Porque nelas evoco Calisto I (Papa de 217 a 222) e reafirmo que não será inútil crer em tantos séculos de Fé. Talvez como S. Tomé, seguramente sem a determinação daquele Sumo Pontífice filho de escravos nascido no Transtevero. A quem foi prescrito organizar e dar sepultura condigna aos membros da comunidade romana cristã ainda disfarçada, ainda martirizada.
Assim a cripta foi sendo cavada, distendida, ramificada. Até ao silêncio que a aplacou depois de gerações chorando e confiando, saudosas e esperançosas, na despedida dos seus que partiam para Deus. É importante esclarecer, ali foram depositados os restos mortais de alguns dos primeiros Papas e de um número volumoso de mártires (pois, - desses que morriam nas arenas do circo por não renegarem o baptismo), circunstância que trazia para perto da sua santidade os demais irmãos. As centúrias não param, a necrópole cresceu, tornou-se labirinto, um imenso cemitério todo ele sob os dias visiveis.
Não faltou a pergunta inicial acerca da claustrofobia... Na boca íngreme de umas escadas manhosas que nos punham uma dezenas de metros no fundo.
Não, sem problema, a vontade era muita. Sem tetricismos, apenas no chamamento das almas que, tão remotamente, ali deixaram repousando os seus corpos. No encaracolar dos corredores, o grupo seguia calado e respeitoso: de uma e outra banda, gavetões, sepulcros antigos, cujas ossadas foram preservadas e subtraídas à profanação dos mais curiosos... As catacumbas, aliás, ficaram em desuso desde que as relíquias dos santos nelas depositados depois as conduziram a lugares exultantes do culto. Só já com a arqueologia oitocentista o local foi descoberto, e logo iniciadas as escavações.
Mas não era a arqueologia o interessante nesta nossa descida à necrópole de S. Calisto. Mais pesava a força do Ideal e da Fé, o que o braço humano é capaz para sustentar e transmitir a Palavra, um mundo novo falando de forma diferente. Porquê o cuidado com os restos mortais, quase um paradoxo para quem põe o acento tónico na vivência e na sua simplicidade?
Talvez pela ideia biblica da ressurreição dos corpos no final dos tempos. Talvez por defesa dos familares seus. Talvez por amor e caridade. Talvez por medo. Seja o que tenha sido, sozinhos ou em família, nas lapas mais alargadas, os cristãos ali se quiseram ficar.
Decerto sem oferendas aos deuses... que já tinham morrido no vendaval de Cristo. Mas no carinho dos seus, numa proximidade que acreditavam um dia seria mais próxima ainda.
Numa linguagem codificada, assinalando a sua passagem com alguns símbolos, dos quais se destaca o peixe, - em grego, "ichthus", um acrónimo de "Jesus, Christos, Theou nois Soter" (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador).
A apologética faz-me comichão. Eu acredito no que acredito e ninguém tento catequizar. Que fique bem claro. Por isso, este apenas o manifesto de uma emoção forte, da visão dos meus primórdios espirituais, o reforço da vontade na Fé. Tudo, de resto, muito exacerbado na beleza da Eucarístia em que participei, ali, tão debaixo do chão e da luz do meio-dia. E da qual, para pretensos retratos, a máquina chamar-se-á coração e a revelação leva um "R" grande, sendo sem olhos as imagens.