Vésperas...
Venho de muito longe em caminhos destas botas que aleijam, e sangram em mim as saudades da terra corrida sem pedras no couce do arado.
O Fidalgo foi-me buscar ao meu coberto. Que viesse, era uma ordem, trouxesse o bornal e que comer - um naco de broa, um pedaço de toucinho, íamos por El-Rei. E como eu também o Bastião e o Silvestre...
A Mulher chorou - Cala-te mulher! De que nos vale chorar? - E pus à cinta a funda e o cutelo guardado na arca do meu Pai Vicente, que Deus tem.
A hoste do concelho reuniu com gente de monta. Marchámos a pé, já perdi a conta aos dias. Nas cavalgaduras apenas os fidalgos em reluzentes armaduras. A mim coube em sorte um gibão pregueado em ferros e um pique sempre a roçagar as ramagens. Marchámos, marchámos, de ataduras dos joelhos para baixo, um casco ferrugento, amolgado, a macerar-me a testa.
Pois prá'qui estamos agora, a bem dizer iluminados pelo fogo do cerco ao castelo. Quase todos os dias são chamados muitos, e muito poucos voltam. Ele são as escadas e os arietes trepando o monte, e os berreiro e os urrros, o pavor dos padecentes debaixo do pez fervente e dos pedregulhos lançandos das ameias. Há quem nem pie - os cortados por frechas e virotões, felizardos... E a cavalaria não avança, carece de espaço, estamos como estávamos, as portas sempre rijas da muralha e o trabalho impossível dos peões sem nome.
Diz que amanhã, ou depois, nos toca a vez. Então lá iremos, o Bastião, o Silvestre e eu, João filho de Vicente, e os outros todos. Quantos de nós hão de regressar para voltar?
Espreito o castelo e o medo passa-me ao lado. Se havemos de morrer de fome ou da peste, caindo aos pedaços, porque não morrermos lapidados, agarrados ao pique? Que outra escolha para nós? Do pez ou do azeite a escaldar, dos calhaus, pode o Senhor até compadecer-se mas ...
... viver a pensar em morrer é que não adianta. Tenho acaso uns trinta anos e choro só os dois filhitos que ficaram entregues à mãe... Saudades de um pai levado pela sorte em que nasceu.