De volta ao Natal
O estradão de acesso fora pavimentado em pedra há já um bom par de anos. Mas parecia, ao invés do previsivel, os tinha afastado daquele fundo do vale sempre mais só, sempre mais quieto.
Na mata, chegando dias maiores, arrulhavam os pombos, piava a gula dos milhafres... E na veiga criava-se uma vinha nova, promissora como o futuro dos ótimistas, mais o milho e o pasto do gado leiteiro.
Entre paredes, porém...
O tempo parara, andavam todos arredios. Alguns por muito longe, outros apenas cumprindo o vazio. Como se nas veias daquela casa o sangue deles houvesse congelado.
Era assim desde que o Pai e a Mãe tinham findado os seus dia terrenos, alçando-se aos Céus. Deixando cá em baixo um desamparo difícil de remediar.
Mas o Natal em família foi, esse ano, uma decisão irreversível. Viessem, viessem, que viessem todos de preferência. E chegou a maré dos preparativos, chegou, enfim, a noite da Consoada: o renascer dos abraços da sala de jantar, aquela mesa para tantos sob o lustre monumental, a toalha a deixar cair as saias quase até ao chão. O centro verde das ramagens e pintalgado de bolas de azevinho...
Não havia luzinhas pisca-pisca. O pinheiro viera da mata, rapaz mancebo cercado de musgo, e na lareira crepitava lenha seca, ardendo fácil. Imediatamente antes do bacalhau cozido, de uma colecção de travessas dele e do habitual acompanhamento, chegou a Tia, cujos 99 de idade já a transportavam numa cadeirinha de rodas. E atrás dela, três gerações, a mais nova ainda de colo.
Sentaram-se, cada um no seu lugar, ladeando os decanos. A lareira baforava, aquecia e dilatava os corações. Até o Menino Jesus parecia mais confortado no Presépio, o burro e a vaca já dormiam pachorrentamente. Gabou-se a cozinheira e a escolha dos vinhos. E deu-se ferozmente nas rabanadas e no bolo-rei. Como antigamente, no tempo em que eram o Pai e a Mãe a presidir à mesa.
E eles lá estavam, afinal. Visivelmente entre os filhos, os netos e os bisnetos. Se calhar descidos pela chaminé da lareira, atiçando as brasas e espalhando o calor pela sua prole a reanimá-la, a apontar com as mãos o caminho para a frente.
Deve ter sido isso. Porque jamais o Presépio permaneceu encaixotado e o estradão em pedra esquecido. Além de que para o próximo ano mais dois bisnetos jantarão à mesa, ao colo das netas suas mães.
(Conto escrito no âmbito do desafio lançado pela Isabel Silva - https://imsilva.blogs.sapo.pt/colectanea-de-contos-2023-335039)