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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Ao serão

João-Afonso Machado, 27.02.24

ARMAS NA LAREIRA.JPG

Findara já a época das aventuras. E também o Tempo, mais precisamente, a cronologia. Dá o toque a lareira, um estranho cubículo onde não cabem os antepassados que, no entanto, estão lá. E a conversa a quatro é diária e corredia.

Todos falam. Primeiro o Bisavô, o dono da velha arma belga com que o bisneto, aos 15 anos, caçou o primeiro coelho. (O Bisavô era danado por lebres e célebre a sua matilha de galgos.) Depois dissertararm os breves 43 anos do Avô, as suas proezas venatórias de miúdo vigiado pelo Ferreira, homem de confiança da Casa. Já o Pai (querido longevo Pai) transbordava em perdizes e andanças durienses onde fazia questão de rebentar, por exaustão, os guias locais. O filho (o neto e bisneto) já nem espaço tinha para acrescentar algo. Falaria dos seus perdigueiros portugueses, como a Casa nunca os teve... Somente arguía - guardava ele o espólio e tinha algumas histórias de lebres (para espicaçar o Pai, que nenhuma matara)  e um caderninho pouco apontado de perdizes e javalis.

Nada obstando a que os seus antecessores, comodamente assentados (ele, o rapazola, no chão, de pernas traçadas à chinesa), inquirissem ferozes sobre a outra arma. - Pois foi uma oportunidade, alguns tiros sem pólvora preta, algumas codornizes... e a arma laqueada, o estoiro à vista, a parede como remedeio.

A assembleia sossegou. O Bisavô acendeu um charuto quando o Avô ajustou o monóculo na sua esquálida figura. Com o querido Pai a dar conta de mais um cigarro. Permaneceu calado o rapazito sexagenário. O mundo é feito de épocas, e as épocas feitas de histórias. Está para vir o tempo das memórias do bisneto-neto-filho. Mas só quando os perfis das calibres 16 e 12 - ambas o símbolo de uma gente de espírito sadio -  falarem a contar a seus corridos caminhos.

Porque assim é, sentindo o sangue em si, o menino sexagenário se enquadra (à confiança) numa cadeia sem fim, elo após elo...

 

Curiosidades de vizinhos

João-Afonso Machado, 23.02.24

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Nessa noite quente de há dez anos, urgia dar uma volta, arejar. E fomos, rua fora, tanta gente já ausente em férias, lugares calados onde somente, a páginas tantas, ouvimos o miado infrene de uma gato afogadiço. Fui no seu encalço: o bichano, menor do que um esquilo, sofria pavores debaixo de um carro. Apanhei-o e bati às portas mudas até que um transeunte, com aliviada expressão, quase implorou - Leve-o, leve-o! - E eu perguntei à minha Senhora se era para levar.

Que sim, com certeza. Ele sossegou no meu colo, sentiu forte a entrada num lar e... adoptou-nos!

Correu muita história. A começar pelo baptismo - "Teco", de sua graça; mas para mim sempre o "Gato" ou o "Gátio", consoante. Dormia na nossa cama e fazia serão ao colo da madrinha.

Quando a morte venceu a vida, o Gátio viu-se reduzido à minha companhia. Eramos bons amigos até porque (imposição dele com patadinhas no meu nariz), às seis da manhã, Sua Ex.cia era servido gozar de um magnífico primeiro-almoço.

Já Egas nasceu em berço de ouro. Filho de pais do melhor pedigree. Assaz viajado, correu Portugal de Bragança ao Alto Alentejo, frequentando os nossos quartos, assistindo entusiasmado ao Europeu de 2016. Orientado por mãos femininas, contemporâneo do covid, a sua transição para o escalão dos caçadores andava ainda em estágio.

E eu sozinho com os dois. O Gátio levou-o um tumor; o Egas, a dentuça aguçada de um castro laboreiro, retalhado quando ambos disputaram a mesma cadela em cio.

Alto lá! - atirei para o ar. E busquei Dona Mécia, a sobrevivente na quinta, e trouxe-a para comigo.

Assim ficou apenas a recordação com que deparei o outro dia. O Gátio e o Egas, amigos amicíssimos, matinalmente à janela a cocar qualquer discussão de vizinhos. Parolamente à espreita pelo arrancar de cabelos. A vida deu nisto. Eu não sou de arrancar cabelos, espreito discretamente e até pode acontecer de intervir, parvoíce em que o Gátio e o Egas nunca se envolveriam.

 

Santarém, lá no alto

João-Afonso Machado, 18.02.24

Quando aterrei na estação ferroviária e pedi informações sobre o Jardim da Ponta do Sol, - o sol queimava já e alguém, espantadamente, apontou o dedo quase na direcção do grande astro, como quem recomenda o táxi. Mas estava fora de causa. Velhinho assumido, sem despregar a mochila, onde antes chegaria mais depressa chego agora com vagar, a passo curto e felizmente não ofegante.

Foi uma jornada e pêras até aos vestígios do medievo castelo de Santarém! Lá no topo, em recônditos trajectos de Mendo Moniz na tomada da fortificação - cujas portas rachou à machadada - na sua tomada aos sarracenos. (Para que se saiba, daí surgiu o apelido Machado e os meus "papiros" dizem-me dele um ascendente directo, sempre na varonia. Enfim, vaidades...) Ora, como não trepar tantas ladeiras, ainda por cima com uma mochila e um boné, apenas, que o velho Mendo Moniz esgalhou de armadura e elmo?

Cheguei, por fim. Suando, mas sem arremetidas e lanhos inimigos, esquecidas cimitarras...

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Entrei no jardim sem necessidade de arrombamentos e subi aos torreões, regalei-me com o Tejo. Logo compreendi a ganância islamita pelo olhar pacificado da lezíria sem prazo. Respirei muito fundo e deixei que o silêncio tomasse conta de mim, ou da minha história. A montante e a juzante, - o grande braço do rio maior.

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Talvez tenha erguido a espada. Se o fiz, era a espada do mundo vindo de longe, vislumbrado de entre as ameias a caminho para o sempre, vista maior e fiel ao infinito.

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Depois desci. Passei a igreja da Alcáçova, confinante com o Jardim e as suas ruínas,

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o esqueleto do Teatro Ana Damasceno, em quarteis de poisos culturais que o passado recente devorou,

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tudo evidências de uma Santarém mais viva, mais apaixonada. Bateu-me no olho o pórtico manuelino de Santa Maria de Marvila.

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Sempre por íngremes rampas que me conduziriam ao velho mercado escalabitano,

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onde dei por finda a visita e fui descansar - o dia seguinte, logo na alvorada, estava dedicado à Azambuja...

 

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