A manhã começou em tremenda baralhação entre a reserva do hotel e os movimentos do cartão de crédito que culminaram em nada, senão uma jura minha em manter revigorada a guerra total às "apps". Já no aeroporto, tal a exaltação, fiz o meu testamento no bloco-notas que acompanharia o que eu fui, tudo a entregar aos meus filhos.
Embarquei e escrevi durante o voo um compacto manifesto contra a Net. Foi uma viagem assim rápida, com um autocarro directo prontamente a deixar-nos junto à gare ferroviária de Nantes. Mochila calçada, a saca da máquina fotográfica também, parti cidade adiante sem saber para onde nem o lugar da dormida.
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Havia um rio, um cais, um molho de embarcações. Perguntei quem era e um nativo apressado informou-me ser o Erdre. E com o Erdre teve início a minha pacificação.
Há Erdre na extremidade da cidade, que o condenou às ratazanas dos subterrâneos até às proximidades do Loire, seu suserano. Era aqui que eu estava, agora deliciado com o esconde-esconde de um mergulhão (de-bico-grosso), santa ave a lavar-me a cabeça de todas as maçadas.
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Regorgitava a gente passante, e quase tantas bicicletas, nas planuras de Nantes rentes à Gare. Ali pelo cais e as embarcações, o mergulhão e as águas quedas onde os computadores escorregando, caindo e submergindo, se transformam em meros aquários... O tempo em Nantes dispensava o blusão e um nico à frente dei com o primeiro hotel.
Entrei. Receberam-me duas bonitas e simpáticas francesinhas. Havia quarto, sim senhor!!! E, comedidamente roubado, assegurei a minha estadia por uma noite. Agora era aproveitar, com todas as cautelas para não levar em cima com a silenciosa frequência dos tramways.
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O Chateau du Duc de Bretagne ficava nas imediações. Imponente, todo ele cercado por um fosso sólido e liquido,
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a ponte levadiça anunciando uma exposição memorial e não sei quantas coisas mais.
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O Chateau é hoje um museu importante e a Senhora Duquesa, numa janela cimeira, olhava de soslaio o burgo enquanto cosia meias e outras sumptuosidades.
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Cá em baixo vivia-se. Bebi tranquilamente uma cerveja em quietude de esplanada. Defronte, um rapaz da minha geração e a sua guitarra ganharam uma moeda e o melhor com que os podia medalhar - Eric Clapton, assim o intitulei.
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(Tocava com excelência, o artista, e meneando a cabeça felicíssimo refinou então nos acordes.)
No fosso, as pessoas e os cães passeavam à borda de água e gozavam o solzinho. Nantes calara-se completamente, decerto paralisada pelo amigo Clapton e pela tranquilidade do lugar.
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No oposto, já não tanto assim. O tramway surgia inopinadamente, como um torpedo, perigosa surpresa. O espelho aquático do jardim atraía gente para os bancos vizinhos.
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Quis saber o nome deste outro mais agitado recanto, mas a jovem indígena, decerto assentada sobre o seu dia de trabalho, respondeu-me «je ne sais pas»; e depois, muito marota, alvitrou com um sorriso: «le Jardin du Chateau, non?». - Mais oui, surement, le Jardin du Chateau - anuí enquanto ia embora, já sem idade para certas coisas...
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Rumei à Cathédral de Saint Pierre et Saint Paul. Esguia, fechada porque em obras, os seus pináculos espetados no rabo do céu. E só fotografável do meio da Rue General Leclerc de Hauteclocque, mesmo em cima do risco contínuo, com a divertida complacência dos automobilistas.
Vadiei. Conheci as monumentais Place du Buffait,
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Place du Commèrce,
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Place Royal.
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Em todas elas o formigar dos passantes e a multiplicidade de etnias e bizarrias. Somos cada vez mais da era dos paradoxos, ocorreu-me, ao topar tantos sem meias e de calças pela barriga das pernas, mas embrulhados em espessos sobretudos. Estreitas e arrumadíssimas ruas entrecruzavam a teia citadina. As montras típicas das boulangeries et patisseries,
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a descoberta de livrarias e antiquários em que as minhas horas haviam de sofrer circulando ao largo. Estava já anoitecendo...
Dormi tranquilamente. E antes do comboio matinal para Rennes, a escolta feita ao Erdre até à sua foz no grande Loire, o maior rio francês.
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Diante mim a ilha de Nantes (porque o Loire se desdobra em dois braços unificados a jusante). No percurso alguns repentes de modernidade,
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também, quem sabe?, para explorar um dia. É que o mundo vai-se tornando maior do que o tempo...