Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

O fugitivo

João-Afonso Machado, 28.04.24

IMG_7100.JPG

Foi um instante: habituado àquele número certo, o cômputo dos subscritores na barra lateral do blog, um número que já era família, matinal "bom-dia!" todos os dias, dei conta de que murchara, empobrecera, tornara-se mais chocho.

Senti ímpetos de o procurar, de o trazer ao painel pela gola do casaco, com promessas amigas à mistura. Era só um "1", uma unidade: mas porquê??? - Se se tinha zangado que se manifestasse e eu não mais passaria sobre o risco contínuo...

Caí em mim, todavia. Esse "1" já ia longe, já devia ter passado o Douro deste impalpável mapa. E o GPS do meu carro uma merda, um mentiroso diplomado. Antes as imemoriais equações do liceu que tanto me deslustravam entre os colegas de Matemática!

Bem vistas as coisas, o (o "1") subscritor somente partira sem deixar aviso na página de necrologia do JN. Foi para outro mundo decerto mais eterno e comunicativo, mais desenhado e menos escrito, sem a minha espingarda a açoitar-lhe os ouvidos, a cadela a lambuzá-lo, longe dos borrões da minha caneta.

Da sua pessoa nunca saberei. Até podia ser uma miúda gira. Ou uma velha rabugenta, uma poetisa de exacerbada e indomesticável sensibilidade. Seja como for, aquele "1" a menos vai muito acima da mais básica contabilidade. E as espessas nuvens do princípio do fim descarregavam agora, sobre a minha cabeça, aterradoras trovoadas que me escangalhavam a agilidade da mão.

Sobreveio a bonança. Esse "1" podia ser uma estrela apagada que a distância ainda revelava luminosa aos nossos olhos. Portanto a escrita prosseguira já a lâmpada se fundira. Nunca sabemos o que vai do lado de lá; e do de cá? - escrevemos por necessidade mental ou para sermos lidos e apreciados pelos outros? «Ser ou não ser - eis a questão»... 

 

Pink Panther

João-Afonso Machado, 24.04.24

NA CONSTITUIÇÃO.jpg

Tarã, tarã... É imortal e vive agora no Porto, para desespero de Alfama, Mouraria e outros lugares finos dos estrangeiros endinheirados. Pink Panther, a mais famosa pantera do mundo. Tarã, tarã.

Denunciou-se, fotografada em flagrante, em plena Rua da Constituição. Manhã cedo, toda prosápia, Friz Freleng enchapelou-a, dotou-a de misterioso saco poisado no chão. Mas porquê a Constituição, tão tranquilamente burguês recanto tripeiro, e Pink Panther assim arredada do seu calendário nonsense? - Pink Panther que não tem horários, apenas o mundo inteiro, agora decerto mais centrado - tarã, tarã - entre acontecimentos imprevisiveis, ináuditos, insolentes, no Bairro do Lagarteiro. Tarã, tarã.

Podia ser imaginação, dirá alguém. Todavia Friz Freleng é um realista convicto. A Pantera, a verdade, nua e crua. Aparecendo aqui e ali - tarã, tarã -, como quem prega um susto aos incréus. E assim deram as sondas novamente com ela, Pink Panther, no andarilho ferroviário. Pink, always Pink, conquanto de auscultadores, gingando hip-hop, roupagem a condizer com a intempérie, guarda-chuva na baínha da espada. Tarã, tarã...

IMG_9237.JPG

O viajante fixou o reencontro. Qual Inspector Clouseau. A Pantera dançou, mudou de linha. - Frit, caro amigo que cá não está, remate a história, faça esse jeitinho...

Trabalho do Clouseau? Ora, ora, isto é uma crónica, não uma longa-metragem. Despache-se, faça o favor. Então onde está residindo a Pantera, para a gente ir lá assistir ao seu despertar? É só isso! Tarã, tarã.

 

De Saint Malo para Jersey, by ferry

João-Afonso Machado, 20.04.24

Tudo começou muito mal. À saída do hotel, pelas cinco da manhã, a escuridão era impenetrável. Tropecei, quase fui de nariz ao chão, e o único meio de orientação ao meu dispor eram os faróis dos raros automóveis em trânsito. Em tal breu cósmico, como alcançar o cais e as docas a quase dois quilómetros de distância?

Chamaram-me a atenção as luzes intermitentes de uma ambulância, muito perto, a descer uma rampa... Nessa direcção me desembrulhei: chegara às urgências de um hospital e entrei porta dentro, ainda o paciente se acomodava na maca com rodinhas. Expliquei sucintamente que não era nem mocho nem coruja nem morcego. E que queria não ir às cabeçadas até ao porto de mar, não queria perder o ferry para Jersey. Muito solícita, uma senhora nova, suspeito que médica, foi aos serviços administrativos, pegou no telefone e mandou vir um taxi que prontamente chegou. Agradeci reconhecidíssimo. E fiquei sabendo, em Saint Malo a iluminação pública só se acende quando o dia começa a nascer.

Bem, foi bonito assistir ao seu parto já a bordo. Fazia frio e a embarcação assemelhava-se a uma dessas antigas, subindo e descendo o Mississipi oitocentista. Três pisos, um bar em cada um, uma loja pelo meio, mesas e cadeiras em redor, no deck de cima, e a varanda à retaguarda como o ninho das minhas fotografias.

Logo cacei uma visão global de Intra Muros (assim mesmo chamado), a fortaleza que foi Saint Malo medieval.

IMG_9094.JPG

Como também não falhei a parte que me interessou dos muitos ilhéus vizinhos, propriedade francesa,

IMG_9093.JPG

um ou outro acastelado, guardando ainda denodados laivos defensivos.

IMG_9104.JPG

Não fiz contas aos farois. (Eram muito mais do que os carros no rocambolesco início da jornada...)

IMG_9107.JPG

Antes gozei as neblinas do Canal da Mancha, a lenda de que pela primeira vez me abeirava e onde enfim navegava.

IMG_9115.JPG

A uma hora de entrarmos em águas territoriais britânicas, porque Jersey é inglesa, a única parcela inglesa que os nazis, dada a sua proximidade à costa francesa, conseguiram ocupar. À medida que a claridade se fazia sentir mais iamos dando conta do movimento nesta autêntica auto-estrada marítima.

IMG_9116.JPG

Quantas desgraças ela não terá testemunhado! À sua superfície, nos céus que a cobrem, no que ficou depositado nos seus fundos... O Canal da Mancha foi o inferno dos primeiros actos da tragédia mundial de 1939-45. E percorrê-lo, se não apenas como frivolidade turística, é viajar no tempo, escutar o ruído dos caças, o estrondo dos canhões ou das bombas entre o silêncio dos dias presentes.

Jersey aproximava-se. De um modo entusiasmantemente promissor, de princípio, outra vez sugestivas castelanias

IMG_9118.JPG

entre as rochas, e uma expectativa poderosa face ao reclame das suas belezas. Mas o porto revelou-se coisa pouca, desarrumada, um longo tapete de cimento,

IMG_9135.JPG

caminhada nada anfitreã até aos aposentos alfandegários onde, ainda por cima, depois de ter apresentado o passaporte, resolveram os policemen implicar com o traveler, a perguntarem-lhe se transportava drugs or tobacco! E o traveler de tal modo se irritou who screamed - I don´t like it! I'm a portuguese Lord! - porque, no caso, gentlemen são todos, não chegava, era pouco. Certo é, a mochila permaneceu incólume, longe das suas manápulas - Sorry, Sir! -. Está bem pá, por esta vez vais perdoado...

Mas caíra uma nódoa no bom pano e tudo se resumiu a correr ruas em Saint Helier, a "capital". Uma complicação! Os de lá aceitam pagamentos em euros mas dão o troco em libras: pois que as metam onde melhor lhes aprouver; e estive até ao fim sem saber se a hora do regresso seria a inglesa ou a francesa... Hei de voltar, sim, a Jersey, mas pilotando um Messerschmitt!

 

Pág. 1/3