Tudo começou muito mal. À saída do hotel, pelas cinco da manhã, a escuridão era impenetrável. Tropecei, quase fui de nariz ao chão, e o único meio de orientação ao meu dispor eram os faróis dos raros automóveis em trânsito. Em tal breu cósmico, como alcançar o cais e as docas a quase dois quilómetros de distância?
Chamaram-me a atenção as luzes intermitentes de uma ambulância, muito perto, a descer uma rampa... Nessa direcção me desembrulhei: chegara às urgências de um hospital e entrei porta dentro, ainda o paciente se acomodava na maca com rodinhas. Expliquei sucintamente que não era nem mocho nem coruja nem morcego. E que queria não ir às cabeçadas até ao porto de mar, não queria perder o ferry para Jersey. Muito solícita, uma senhora nova, suspeito que médica, foi aos serviços administrativos, pegou no telefone e mandou vir um taxi que prontamente chegou. Agradeci reconhecidíssimo. E fiquei sabendo, em Saint Malo a iluminação pública só se acende quando o dia começa a nascer.
Bem, foi bonito assistir ao seu parto já a bordo. Fazia frio e a embarcação assemelhava-se a uma dessas antigas, subindo e descendo o Mississipi oitocentista. Três pisos, um bar em cada um, uma loja pelo meio, mesas e cadeiras em redor, no deck de cima, e a varanda à retaguarda como o ninho das minhas fotografias.
Logo cacei uma visão global de Intra Muros (assim mesmo chamado), a fortaleza que foi Saint Malo medieval.
Como também não falhei a parte que me interessou dos muitos ilhéus vizinhos, propriedade francesa,
um ou outro acastelado, guardando ainda denodados laivos defensivos.
Não fiz contas aos farois. (Eram muito mais do que os carros no rocambolesco início da jornada...)
Antes gozei as neblinas do Canal da Mancha, a lenda de que pela primeira vez me abeirava e onde enfim navegava.
A uma hora de entrarmos em águas territoriais britânicas, porque Jersey é inglesa, a única parcela inglesa que os nazis, dada a sua proximidade à costa francesa, conseguiram ocupar. À medida que a claridade se fazia sentir mais iamos dando conta do movimento nesta autêntica auto-estrada marítima.
Quantas desgraças ela não terá testemunhado! À sua superfície, nos céus que a cobrem, no que ficou depositado nos seus fundos... O Canal da Mancha foi o inferno dos primeiros actos da tragédia mundial de 1939-45. E percorrê-lo, se não apenas como frivolidade turística, é viajar no tempo, escutar o ruído dos caças, o estrondo dos canhões ou das bombas entre o silêncio dos dias presentes.
Jersey aproximava-se. De um modo entusiasmantemente promissor, de princípio, outra vez sugestivas castelanias
entre as rochas, e uma expectativa poderosa face ao reclame das suas belezas. Mas o porto revelou-se coisa pouca, desarrumada, um longo tapete de cimento,
caminhada nada anfitreã até aos aposentos alfandegários onde, ainda por cima, depois de ter apresentado o passaporte, resolveram os policemen implicar com o traveler, a perguntarem-lhe se transportava drugs or tobacco! E o traveler de tal modo se irritou who screamed - I don´t like it! I'm a portuguese Lord! - porque, no caso, gentlemen são todos, não chegava, era pouco. Certo é, a mochila permaneceu incólume, longe das suas manápulas - Sorry, Sir! -. Está bem pá, por esta vez vais perdoado...
Mas caíra uma nódoa no bom pano e tudo se resumiu a correr ruas em Saint Helier, a "capital". Uma complicação! Os de lá aceitam pagamentos em euros mas dão o troco em libras: pois que as metam onde melhor lhes aprouver; e estive até ao fim sem saber se a hora do regresso seria a inglesa ou a francesa... Hei de voltar, sim, a Jersey, mas pilotando um Messerschmitt!