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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

O cais palafítico da Carrasqueira

João-Afonso Machado, 30.05.24

Já conhecia este recanto do estuário do Sado não longe de Tróia ou da Comporta. Mas, a outra vez, acertara em pleno nos lodaçais da baixa-maré. Com outros cheiros, sem a ondulação, também sorvendo a maresia enquanto os barquitos de pesca, o dorso tombado no fundo, pareciam as dores de uma égua a parir na lama da estrada.

Agora as águas subiam e a maior fatia das embarcações já flutuava.

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Não eram muitas, o grosso andaria na faina. É assim o lugar dos pescadores da Carrasqueira.

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O cais, posto nas suas andas, remonta ao início da segunda metade do século XX, não sei se prolongando alguma prática ancestral das gentes dali. Manifestamente, a Câmara de Alcácer do Sal, ou entidade semelhante, deu consistência e largueza e ângulos rectos, planura, ao corredor central do cais. As suas ramificações, o "parque de estacionamento", impróprio para quem sofre de vertigens, mantem o aspecto periclitante e flexível de umas tantas tábuas à toa,

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no entanto perninhas sadias e treinadas, afeitas a suportarem grandes doses diárias de peso e os barracos onde se arrumam os apetrechos de pesca.

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(Senão quando, porventura, o arcaboiço sobre as redes de qualquer pescador com o motor encharcado em combustível...)

E discretamente se vendem por ali, a preços de ocasião, ostras, ameijoas, uma sorte inteira de bivalves saindo dessas casamatas para as mãos dos visitantes, por regra muitos. Os bastantes para que os pescadores protestem pelo seu recato,

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conquanto seja certo tantas vezes dá Deus nozes a quem não tem dentes...

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Cercam-nos o lago, alguns ilhéus, aves longínquas, temerosas. Na margem oposta, para lá das neblinas, adivinha-se Setúbal

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e avista-se enfim o Adamastor. É já cadáver e viveu anos e anos usando o nome de Setenave.

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Tão maior do que, nesta banda, as cores alegres e caprichosamente decoradas dos cotés piscatórios. Mas ainda no reino dos «peixes peludos», como no tempo de Raul Brandão os povos marítimos intitulavam os golfinhos.

 

José da Xã "Des(a)fiando Contos"

João-Afonso Machado, 25.05.24

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Afinal não chegou a completar-se um ano sobre o pactuado almoço na Amadora. Por uma mão cheia de razões, talvez, mais decerto porque o Amigo José da Xã (blogue LadosAB -https://ladosab.blogs.sapo.pt/) partiu mundo fora a apanhar contos vivos. E, acabado de regressar, deu-os à estampa, proeza que não poderá passar despercebida.

O périplo terá corrido o espaço mas insistiu sobretudo no tempo. Alumiam-se, os contos, em candeeiros de azeite, aquecem-se no brasume da lareira do lavrador quando a chuva e o frio atacam a noite. E por essa ruralidade foram ficando, ora colhendo azeitona, ora negociando terras. Depois os contos abalam e alcançam cenários mais actuais: os hospitais, as escolas, quem os frequenta; os bairros citadinos periféricos, o seu característico falar, as tatuagens e outros adornos de agora; vivenciam a doença, a tristeza, a ilusão, a dura realidade dos finais nem sempre felizes, não raro com uma pontinha de fatalismo até; entram nas igrejas e são colhidos de surpresa pelas dúvidas da Fé, essa duríssima prova; e souberam lidar com gente boa e gente má, sobretudo com um enorme manancial de imprevisibilidade que os contos - às vezes mais uns postais - imparavelmente expressam.

Escrevendo o que escreveu, o José da Xã terá, por fim, desabafado - É a vida!

E veio então a Olga Cardoso Pinto (blogue A Cor da Escrita -  https://acordaescrita.blogs.sapo.pt/), com as suas ilustrações, reforçar a crença, a noção de que os dias da vida... são mais os bons do que os maus...

 

Famel, a saudade lebreira

João-Afonso Machado, 22.05.24

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Tinham triste fim sempre, esmagados sob uma camioneta, roubados descaradamente, até que não houve mais. Os galgos ficaram na infância entre os maiores desgostos do Pai e os campos de milhã onde corriam num rasto de cobra a escapulir-se. E assim o Passado se guardou fechado à chave.

Talvez Famel tenha olhado para trás e reparado nele, a uma semana de distância das pequenas que, segundo as últimas notícias, estão bem, somente saudosas de um passeio, uns mimos.

Famel decerto sentiu a assobiadela como um piropo, um convite. E veio, de cauda a badalar e um brilho amigo nos olhitos.

As mãos deslizando no seu pelo curto garantiam-no igual, carregado de recordações e de dizeres que Famel ouviu de pálpebras já caídas, a cauda soletrando essas palavras todas que a queriam ali. Deu a sua esticadela de pernas, pinhal adentro, como quem solta uma gargalhada de entusiasmo. Foi como permaneceu o fim de semana todo, sempre de dorso, de focinho, de orelhas dadas. Depois de patas estacadas na distância e no tempo. A gente tem os filhos cá no coração. E, ao lado deles, vontades genuínas de voltar a ontem, mais as de hoje e decerto as de amanhã - prenhes de canídeos insuportáveis, teimosos e trabalhosos, tenebrosamente madrugadores. Mas os que sem dúvida nos entendem melhor. Não é Famel?

 

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