O cais palafítico da Carrasqueira
Já conhecia este recanto do estuário do Sado não longe de Tróia ou da Comporta. Mas, a outra vez, acertara em pleno nos lodaçais da baixa-maré. Com outros cheiros, sem a ondulação, também sorvendo a maresia enquanto os barquitos de pesca, o dorso tombado no fundo, pareciam as dores de uma égua a parir na lama da estrada.
Agora as águas subiam e a maior fatia das embarcações já flutuava.
Não eram muitas, o grosso andaria na faina. É assim o lugar dos pescadores da Carrasqueira.
O cais, posto nas suas andas, remonta ao início da segunda metade do século XX, não sei se prolongando alguma prática ancestral das gentes dali. Manifestamente, a Câmara de Alcácer do Sal, ou entidade semelhante, deu consistência e largueza e ângulos rectos, planura, ao corredor central do cais. As suas ramificações, o "parque de estacionamento", impróprio para quem sofre de vertigens, mantem o aspecto periclitante e flexível de umas tantas tábuas à toa,
no entanto perninhas sadias e treinadas, afeitas a suportarem grandes doses diárias de peso e os barracos onde se arrumam os apetrechos de pesca.
(Senão quando, porventura, o arcaboiço sobre as redes de qualquer pescador com o motor encharcado em combustível...)
E discretamente se vendem por ali, a preços de ocasião, ostras, ameijoas, uma sorte inteira de bivalves saindo dessas casamatas para as mãos dos visitantes, por regra muitos. Os bastantes para que os pescadores protestem pelo seu recato,
conquanto seja certo tantas vezes dá Deus nozes a quem não tem dentes...
Cercam-nos o lago, alguns ilhéus, aves longínquas, temerosas. Na margem oposta, para lá das neblinas, adivinha-se Setúbal
e avista-se enfim o Adamastor. É já cadáver e viveu anos e anos usando o nome de Setenave.
Tão maior do que, nesta banda, as cores alegres e caprichosamente decoradas dos cotés piscatórios. Mas ainda no reino dos «peixes peludos», como no tempo de Raul Brandão os povos marítimos intitulavam os golfinhos.