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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Costumes incas

João-Afonso Machado, 15.06.24

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O vaso empoeira-se esquecido e já desacreditando dos ecos de tanta saudade. Foi no início do inverno. Regavam-no lágrimas e juras eternas. Lembram-se? Alguém se lembrará desses húmidos dizeres?

Apodrece o vaso ameaçado de um dia ouvir na sua mudez - Mas onde estará ele? - Um dia, esse dia véspera de quaisquer férias curtas mas solarengas. A primavera está no fim. Pobre vaso em forma de pretexto, vaso esguio e adiado, porém com nome próprio até.

O vaso são cinzas; foi vida de gente. E a multidão sorri, de caminho já gargalha, é o inconcebível marasmo. Comentado à porta do verão. Porque o destino do vaso é agora o antes de sempre - a caudinha da procissão no fim do cerimonial do sol divinizado.

Enquanto tal, resta-lhe, ao vaso, aguardar. Aguardar a bem-aventurança do clima e o poente do culto, enfim, o seu derradeiro instante antes do escuro sossego da perpetuidade.

 

Audácias de peão

João-Afonso Machado, 11.06.24

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Lembro-o aos domingos, as tardes inteiras a jogar cartas com o meu falecido avô. Era eu gaiato descalço, correndo rua abaixo com o aro e a verguinha enganchada a guiá-lo.

Criei-me e casei, enquanto o Sr. Porfírio envelhecia no mundo só dele, cauto de conversa e de dias diversos uns dos outros. Mas há de ter sido o seu pai, ferrador, quem lhe tirou o medo ou lhe deixou a bengala. Bem sei, os automóveis ouvem-se a rugir ao longe e buzinam a anunciarem-se, e a gente mede o tempo. Mas as curvas rasteiram as distâncias, disfarçam ecos e velocidades, o piso empedrado escorrega como sabão e uma passadeira não é um castelo. O Sr. Porfírio teima, insiste, coxeia indiferente na travessia da rua. Logo depois da curva. E eu é como se me soasse aos ouvidos o chiar dos travões, o tropel da chaparia cromada colhendo o Sr. Porfírio, a sua bengala e a sua saca, o Sr. Porfírio levado nos ares sem um ai!, sem um minuto mais, sem um susto sequer, já a caminho do Céu. Tão depressa, tão depressa, que a ambulância dos bombeiros, quando chegou, nem deu com ele. 

 

Os deuses estiveram com eles

João-Afonso Machado, 07.06.24

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Foi uma das melhores, se é possível haver menos boas. Eles surgiam e desapareciam fulgurantemente. Numa exigência tremenda aos reflexos dos participantes, veteranos que já lhes conheciam as manhas todas. Mesmo as senhoras revelavam a destreza fabulosa das amazonas.

O braço puxado bem atrás, a zagaia lançada num silvo de cometa catastrófico - Zzziii - Tchou! - três bicos cravados na omoplata da fera ainda juvenil. - Força, aí está outro! -  e um novo dardo pronto, espetado num peito, em cheio, levando consigo a morte, já a faca do monte retalhava o anterior, canibalescamente devorado. - Passa aí o espumante, fazes o favor?!

(Esclareça-se, os caçadores oriundos das tribos mais a norte optam por saudar os deuses com maduro branco. E, diz a Mitologia, essa a preferência de Baco também.)

A jornada arrastou-se. Como todas as que saudam o tempo primaveril, depois dos rigores das neves, já no degelo dos glaciares. Animaram-na libações múltiplas, muita doçaria, muito mel e frutos silvestres e a novidade dos cachorros que nas próximas luas serão os companheiros desta malta colectora. A coisa promete, assim a divindade mantenha o nível do que foi este conseguido cerco. E, já se fala, as senhoras acompanharão os guerreiros, lutarão de igual para igual, sem distinções de género, conforme ordenam as vestais constitucionalistas que povoam a nossa selva.

Mas o velho clã só terá a ganhar, depois de 40 anos de caça. Eles já acusando cansaço, pouca agilidade, alguma apetência por esperarem sentados; elas, porém, jovens, frescas, um portento de energia e a pontaria afinadíssima. Sempre nesta vida errante, agora nas planícies bairradinas.