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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

A casquinha do nome

João-Afonso Machado, 30.07.24

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Nessa manhã levantou-se voluntariosa e de ideias fixas na vassoura. Não porque o lixo se acumulasse mas apenas por ter acordado com ímpetos exterminadores.

A sala viveu então momentos conturbadíssimos, acossada por um impiedoso ataque de limpeza, e na rua, de passagem, houve quem se assustasse com o estilhaçado ruído de uma moldura da cómoda, degolada por um fanático espanador na sua sacrossanta luta contra o pó.

Sobreveio o silêncio, enfim. E uma maçadora comichão no nariz empinado em tantas certezas e pensamentos humanistas. Macaco não era, seguramente, os macacos não se passeiam à solta na cidade. Algum papelito transportado na ventania do aspirador? Tremeu ante a visão de uma hipotética barata ou de algum aranhiço. Ainda assim foi corajosamente lá com a unha do dedo mindinho e da sua narigueta retirou, muito enroscado, um nome de gente. Em letras negras, defuntas, que lhe maceravam a alma e transfiguravam a beleza dos seus dizeres e da sua fé nos povos. De resto, era o nome de um fugitivo de data longuíssima, um mariola, uma miragem somente. E aqueles carateres miudinhos uma casca, tal qual as ressequidas peles de que as cobras velhas se libertam primaverilmente - entupindo o seu apêndice nasal.

Deu-lhe um piparote e a pelicula foi indo suavemente para o chão, como se o nome das suas letras ainda ali fosse familiar. A fúria higiénica era ida, uma gaivota já obrara no varandim e o nome, sempre encarquilhadinho, foi empurrado com o pé para baixo do tapete.

 

Alcochete

João-Afonso Machado, 27.07.24

Na aproximação e no pé em terra firme o costume - acresciam os prédios megalómanos, as rotundas e os armazéns, o quartel dos bombeiros voluntários e enfiadas de avenidas com o cheiro de obras recentes. Sem um pingo de Tejo... Assim o autocarro desse as voltas da praxe e a corrida chegasse ao lugar amável de antigamente, à vernácula ribeirinha e toureira Alcochete.

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Depois quem tem boca vai a Roma... Ou ao Largo de S. João, à estátua do emérito Padre Cruz, ainda vivo e coroado de flores até aos joelhos. O maçarico chegava e já abraçava (espreitando de soslaio) os resquícios da vida antiga na beira-rio da outra margem.

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Genuflectiu perante a beleza simples da Matriz antes de tomar o cheiro da Reserva Natural. Não fosse o aeroporto cair-lhe em cima, esmagá-lo. Em ansiedades que faziam esquecer o calor às costas, o insondável percurso a dar às pernas.

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Deixou para trás a praça de toiros. (Ainda somos quem somos...) Calcorreou caminhos de terra batida e regalou-se com a visão dos abelharucos. Com a máquina fotográfica a metralhar sem parança. E o carreiro descambou, enfim, no rio, numa curva assombrada pela ruína onde tentou apanhar em flagrante o passarão que vislumbrara um nada antes.

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Era uma garça real pisando levezinha a maré baixa.

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Mas de nada valeram os mil cuidados para não a espantar. Nem, ao menos, a sombra da inocência e o silêncio das pedras mortas, ela voando já no reumatismo dos hidroaviões de antanho, pesada, vagarosa, mas determinada.

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Só poisou no areal longínquo, uma África qualquer, e o mais seria marginar o grande lago, a coberto das sombras todas... e regressar ao centro da vila com mais uma garça branca, entretanto pendurada ao cinto.

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Urgia hidratar. Agora no restaurante, a entrada foi um litro de água

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e o almoço um arrozinho de tamboril regado por três copos de branco maduro frescos como uma manhã minhota.

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Forças retomadas, veio o carrocel. De ruela em ruela, de largo em largo, ao esconde-esconde com a inclemência do sol.

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E o Tejo sempre lá. Todo pintado a cores diversas e miragens desorientadas chegadas do norte, porventura do nascente ou do poente. O barco diria...

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O Passeio foi uma bussola. Foi quase marroquino. Foi o Lethes da vida metropolitana. Infindo, espantoso, corado como uma corrida até à exaustão. E sem gente porque se estava na hora da sesta. Foi assim Alcochete.

 

Chegado onde?

João-Afonso Machado, 23.07.24

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Cheguei já não me lembro como e quando. Talvez sequer me lembre de onde, quiçá de algum arrozal infestado de mosquitos vampirescos... Sei somente, cheguei vergado e cansado, esfomeado de dias em que se respirasse dignidade. Atulhado de lama garganta abaixo. Trazia ainda os pés molhados e calçados numa esperança qualquer. Sonhei a mesa farta, o pão e o peixe de que outros falaram se multiplicavam.

Mas foi o que consegui: as proibidas amêijoas, a água rasa e o lodo, sempre mais lodo para cima da minha vida. O rio, quero com isto dizer; as horas salobras, castanhas, sem botas, chuvosas ou queimadas pelo sol. E um alerta como um eco - Cuidado com a maré! Podes ir mas já não conseguir regressar com a enchente.

A enchente... traiçoeira como a serpente. Foi ela que tragou o meu primo e parceiro neste nosso grito de revolta por pão e peixe a multiplicarem-se.

Chorei-o. Agora procuro outro que comigo queira dividir a renda de um quarto. Senão nem as amêijoas bastarão para comer abrigado.

 

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