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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Aparições na Granja

João-Afonso Machado, 30.10.24

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Saibam todos, long time ago, fui condenado a 150 anos de ostracismo na Granja. Confesso, era, à época, um rapaz um pouco irrequieto. Um falacioso... Incomodado com tal sentença da Péricles de lá, sem apelo ou agravo, e desobediente por natureza, prossegui as minhas investidas a essa mesma Granja, a coberto da noite, embuçado, a pistola aperreada. Com um alvo na mira, um alvo em que nunca acertei no coração.

Sucede isto a todos nós. Os anos passaram e o policiamento afrouxou. Mas o lar de idosos partilhado é ainda uma impossibilidade, que a guarda não baixou e a Péricles mantém o zelo.

E eu, com provas dadas de fidelidade e bom comportamento, cá vou arrastando a minha cruz. A Granja - praia - é uma tolice. A terrinha, um lugar muito simpático de viver. Faltam somente pouco mais de 110 anos... A gente, se quisesse, alcançava a comutação da pena. Tudo é possível.

Mas não. As linhas telefónicas funcionam e os contactos são assíduos. Ela é linda, conhecia-a no Douro, caçámos os dois... Azar meu, o estafermo da juiza, toda empertigada, lixada (lixadíssima) é amiga dessa flor. E haverá outros motivos...

O relato prossegue em Espinho, em almoçarada de lulas, o mais agradável e mui prodigioso de aproximações minhas à chefatura do meu coração. Mas sempre debalde!

(Gostaria de acrescentar esta ser uma história da minha imaginação. Mas, não sei porquê, não consigo, mesmo querendo não consigo...)

 

O Louriçal

João-Afonso Machado, 25.10.24

A pacata vilazinha do Louriçal, que já foi concelho depois tragado pelo de Pombal, vive toda à sombra do seu avantajado convento de irmãs Clarissas.

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Entre lendas e comprovados factos históricos, são páginas e páginas de curiosas leituras e um ror de intervenientes. Mas tudo talvez em contraposição com a folia de Agosto, em que o Louriçal chama a si todas as atenções das suas famosas festas.

As irmãzinhas não são muitas e vivem em clausura.

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Difícil será pôr-lhes os olhos em cima e, no entanto, elas estão lá, refugiadas atrás do gradeamento. São vozes. A sua belíssima igreja barroca e um só, um ancião nela ajoelhado, rezando alto o terço.

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Responde-lhe em antífona um conjunto feminino, uns metros acima, no coro à prova de olhares humanos trocados.

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O episódio não é comum. Com a maior pureza de sentimentos, hei de confessar o meu sonho antigo de subtraír uma freirinha à severidade monástica, devolver-lhe o sorriso, dar-lhe filhos, as cores da vida, alegrias. Mas os sonhos geralmente só servem para serem sonhados, sobretudo dada a minha exigência de uma alma cristalina e uma carinha laroca...

De modo que não houve tentativas de marinhar paredes. Somente a contemplação desta oração tão vagarosa e gostosamente rezada. Não alcançar tais níveis de espiritualidade não significa não os apreciar, quase os invejar.

De novo cá fora, o Louriçal dormia a sua sesta.

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Chamando ao descanso consigo, soerguendo o olho e revelando o aqueduto que abastece o convento

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e o diminuto edifício da Misericórdia, ainda um eco da sua prosápia concelhia.

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Depois, mesmo antes de tornar à soneca, numa mesura apontou o dedo a uma mercearia, - não ficasse esquecido o seu orgulho-mor, os biscoitos do Louriçal: em forma de "8" e feitio de água, farinha, sal e azeite. Um souvenir de há muitos anos, um vício que esgota sacas; e, decerto, um doce que não é doce, fruto da singeleza das irmãzinhas do convento.

 

Contramanifestação

João-Afonso Machado, 19.10.24

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Vive no corredor da casa no giro de tantas gerações. E prolonga-as, não acontecendo o fim do mundo, um imprevisto, o amúo da alma caridosa que se destaca para lhe dar corda. Rre-rre-rre... Sempre a despertar os ponteiros, in extremis respirando boca a boca, a mão nas correntes e os dois pesos subindo como duas pinhas que descem ao chão. Zze-zze-zze.

Na infinitude dos anos.

E se o relógio, velhinho como a moira encantada das lendas do Avô, chegar à biblioteca - o maple encoirado ao lado, é óbvio, - ou ao alfarrabista, o paciente amigo dos livros em jejum de clientes há quarenta dias de deserto, - Cronos, magnificente e magnânimo, agiganta-se, amolece e revela-se generoso.

É quando o tempo vagueia e nós perduramos. Tac-tac-tac-tac, o mundo é nosso, conquistámos as horas dele também. Tong-tong-tong, agora e depois, só para dizer que somos nós, já não o horário fdp

Vencemos enfim. Almoçando pelo anoitecer e jantando na alvorada. De livro em livro, de manuscrito em manuscrito ou ao sabor da música e das ideias. Essa a revolução despida de ideologias, a genuína, o grande triunfo da quimera.

 

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