A sua ansiedade tornava o ar mais espesso, quase estonteante. Estavam prestes a sentar-se à mesa, todos, a família inteira, a Avó, os Pais, a Tia, os manos. O jantar seria longo, muito conversado, mas com pouco lugar para a brincadeira. (- Tire os cotovelos para baixo, ponha-se direito, ouviu?! -) Havia sempre um adulto e um reparo e Jonas e os seus irmãos haviam de falar baixinho, não se agitarem nas cadeiras e, vá lá…, gozarem antecipadamente os sabores da doçaria, rabanadas à cabeça.
Enquanto tal, os mais velhos celebravam pausadamente a paz e o amor, que era o tema ultimamente a carregar os ouvidos de Jonas, e deliciavam-se com o bacalhau e os grelos e o ovo cozido e o azeite a regar tudo e a afogar a paciência do rapaz, posto num lugar a trinta centímetros de um pratinho atestado de bombons.
A amortecer as pressas, a presença querida da velha Anunciação, servindo à mesa fardada com o maior rigor. Passando pelos menores, estendia a travessa e piscava o olho. Quando não deixava para trás uma carícia nos seus meninos. – Está quase!... – sussurrava, apanhando os senhores distraídos… E assim o tempo parecia menos monótono, mais próximo de atingir o ponto épico do melodrama.
Chegava, entretanto, a maré das sobremesas. Nas gerações acima, sempre havia quem apreciasse primeiro os queijos amanteigados e se babasse com eles em tostas ou bolachas de água e sal. Redobravam os comentários e o vinho tornava a ser servido… Mas já havia bandeira verde para as rabanadas, que a aletria e os mexidos não entusiasmavam. Eram só por ser Natal… Jonas atacou forte nas rabanadas e deixou um espaço na sua pança – de muita caixa e gulosa, então, – para umas fatias de bolo-rei, talvez as bastantes para alcançar o almejado brinde, uma coisinha qualquer, em regra de alfinetar ao peito. Operações demoradas, atirando com a meia-noite mais ainda para daqui a pouco.
Mas a espera, quanto menor - mais alongada se fazia sentir. Na sala-de-estar permanecia a árvore de Natal, um jovem pinheiro colhido nas matas, enfeitado de bolas e dourados helicoidais, com o presépio muito musguento aos pés. O pensamento de Jonas há semanas perseguia os embrulhos fitados que se estendiam adiante. Decerto, também os seus irmãos, todos mais novos, andariam em ânsias assim…
Não faltaria uma hora para esse furioso ataque à guarnição do presépio quando a Avó deu o jantar por findo. O caminho levava então a família à sala, mas com calma, uma calma excessiva, enlouquecedora. Abrir-se-ia primeiro a televisão, vazia de interesses por melhor que fosse o programa, e, era sabido, a oração dirigida pela Mãe tudo o mais precederia. E o Pai fumava, entretanto, sem pressas o seu cigarro, e outro e mais outro depois.
Jonas olhava o presépio, o pinheiro de Natal, os ambicionados embrulhos que se empacotavam uns sobre os outros ali ao lado, e interrogava-se… Sabia que o Menino Jesus concedera aos Pais e à Avó e à Tia o graça de poderem presenteá-lo, e aos seus irmãos, com os seus sonhos, decerto, a tornarem-se em breve realidade. Mas teria o Menino Jesus, entre tanta, tanta, criançada, acertado no pedido há meses formulado? Pior: aquela colecção de pacotes chegara no intervalo do jantar. Diziam, trazida pelo Pai Natal. Porventura o Pai Natal não se teria enganado na chaminé? Iria Jonas receber um ursinho de peluche? E, afinal, quem era o Pai Natal? Quem era esse velho alvibarbas (o termo fora-lhe ensinado pelo Pai, todo muito explicado) que andava pelo mundo a fazer fretes ao Menino Jesus? Só se fosse um santo, um dedicado aos vivos, talvez um antepassado, talvez ele próprio, Jonas, daí a muitos anos…
Mas a Mãe não o incluía no rol das suas santidades. Nem a Avó, nem a Tia… O mistério só não tomava conta do seu pensamento porque a curiosidade e o anseio dos presentes avolumava-se, quanto decrescia a contagem dos minutos para a meia-noite. Quando ainda seria de ouvir a prelecção da Mãe sobre o Amor e a Paz e o adjacente sentido dos presentes trocados entre a família.
Ainda faltavam uns anos para o friorento suplício da Missa do Galo. As doze badaladas soaram finalmente. E foi o ataque, muito sustido pela Mãe após a sua homilia, coitada da Mãe, sempre crendo que a tropa lhe estava dando imensa atenção…, e com algumas vozes autoritárias do Pai, já de pouca paciência para aquela excitação generalizada. Ao que lhe pareceu, nenhum mano sofrera desilusões. Ele, Jonas, estava felicíssimo: o Menino Jesus não esquecera a sua carta e o conjunto Lego, que escolhera do catálogo, era o seu presente.
Faltava montá-lo, obra de amanhã. Porque, entrementes, um estranho sono tomava conta da pequenagem. Um sono tão poderoso que nem os foguetes, largados pelos quatro cantos da terra, prejudicavam. Jonas acredita hoje – e aos Pais, à Avó e à Tia também não… Por isso as instruções do brinquedo dançavam já em órbita dos seus olhos. – Então boa noite… E um Santo Natal! – era o que se ouvia pela sala na reciprocidade das despedidas. Ao fechar a janela do seu quarto Jonas viu a noite estrelada, limpinha de nuvens, sequer lhe ocorrendo – tal o cansaço - a atarefada missão dos Reis Magos, que estaria então no seu começo. Não, importante, importante, é que o Dia de Natal seria de sol a encher a varanda, onde se entreteria a construir o novo brinquedo antes do peru do almoço e de nova farta dose de rabanadas.
E muitos Natais se sucederam. Dezenas e dezenas de Natais. Até a Avó não mais participar neles porque o seu tempo chegara ao fim. Como depois também chegou o dos Pais e da Tia. Jonas, já quase com direito a meio bilhete nos comboios, recorda esses idos longínquos e a sua brusca ingratidão, o seu egoísmo, o olhar apressado posto no Menino Jesus, apenas apostado nos presentes. E sim, era Ele, o Menino Jesus, o autor do Natal e a Avó, os Pais, a Tia, continuam a festeja-lo, agora mais perto do Presépio. Jonas acredita piamente que tudo é assim, e apenas deste modo se sente presenteado no Natal.