Futurando
Serão duas léguas daqui à cidade e o doutor recomendou-me ar puro, ar frio, altitudes. Vivo sozinho. Sem rendimentos, apenas com o pecúlio que a Mãezinha me deixou à sua morte, escondido numa caixa de folha cada vez mais leve, quando soará, enfim, a oco? Assim fiquei espreitando por um canudo as montanhas e me ocorreu este prédio de dimensões sem igual, à saída da povoação, junto à estrada para o norte.
Obra do Comendador falecido o ano que passou. Para que quereria o Comendador, um solitário também, ele e as suas três mulatinhas, para que quereria ele, na sua terra natal, semelhante casarão de rés-o-chão e dois andares empoleirados, - não sei. Mas nele loquei um quarto no topo com varandim, onde aqueço os ossos ao sol, conto as grosas de cabeças de gado nas várzeas ou então vou oferecendo os meus brônquios aos muitos picos serranos para as bandas da fronteira.
Porque o doutor, com as suas pancadinhas no meu ombro, a encorajar, não sabe que eu sei que padeço de tísica. Conheço bem o que me espera e não tardará o dia em que as forças me falhem para subir esta escadaria infinita...
De quando em vez, mais sonoro que o meu catarro, o trangalho de quaisquer automóveis para aqui ou para ali. São os meus melhores momentos de distracção, aquela velocidade toda, a poeira levantada, o rasto de fumo, o chocalhar das molas... E eles multiplicam-se, tem marés que passam dois e três numa tarde apenas. Tempos virão em que hão de ser às dezenas, todos espremendo os claxons, zunindo como foguetes por esses caminhos fora.
Mas então eu já não estarei cá. Já os vermes me terão comido os restos deste meu cansaço, depois de uma curta passagem pelo asilo aqui ao lado, mais uma benemerência do falecido Comendador.