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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Futurando

João-Afonso Machado, 28.01.25

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Serão duas léguas daqui à cidade e o doutor recomendou-me ar puro, ar frio, altitudes. Vivo sozinho. Sem rendimentos, apenas com o pecúlio que a Mãezinha me deixou à sua morte, escondido numa caixa de folha cada vez mais leve, quando soará, enfim, a oco? Assim fiquei espreitando por um canudo as montanhas e me ocorreu este prédio de dimensões sem igual, à saída da povoação, junto à estrada para o norte.

Obra do Comendador falecido o ano que passou. Para que quereria o Comendador, um solitário também, ele e as suas três mulatinhas, para que quereria ele, na sua terra natal, semelhante casarão de rés-o-chão e dois andares empoleirados, - não sei. Mas nele loquei um quarto no topo com varandim, onde aqueço os ossos ao sol, conto as grosas de cabeças de gado nas várzeas ou então vou oferecendo os meus brônquios aos muitos picos serranos para as bandas da fronteira.

Porque o doutor, com as suas pancadinhas no meu ombro, a encorajar, não sabe que eu sei que padeço de tísica. Conheço bem o que me espera e não tardará o dia em que as forças me falhem para subir esta escadaria infinita...

De quando em vez, mais sonoro que o meu catarro, o trangalho de quaisquer automóveis para aqui ou para ali. São os meus melhores momentos de distracção, aquela velocidade toda, a poeira levantada, o rasto de fumo, o chocalhar das molas... E eles multiplicam-se, tem marés que passam dois e três numa tarde apenas. Tempos virão em que hão de ser às dezenas, todos espremendo os claxons, zunindo como foguetes por esses caminhos fora.

Mas então eu já não estarei cá. Já os vermes me terão comido os restos deste meu cansaço, depois de uma curta passagem pelo asilo aqui ao lado, mais uma benemerência do falecido Comendador.

 

Premonições e perguntas inúteis.

João-Afonso Machado, 24.01.25

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Nem sempre me cruzo com Vergilio Ferreira e,  não negarei, evito-o por vezes. Muito recentemente, porém, foi como se nos esbarrassemos na dobra da esquina. Ele vagueando por ali, eu vindo do sul, acabrunhado, péssimista, com pressentimentos maus. Achei-o, talvez por isso, perfeitamente conformado com o destino, a deixá-lo deslizar como o rio já não distante do mar. A margem era ali mesmo e, na sua argúcia, não deixou passar o meu semblante tão contraposto à luz desse belo dia de inverno almoçado com excelência, ainda por cima.

(Mas o que me esperaria à chegada... A mim, que conheço tão bem certa gente, certos tons de voz...) - Nada se avizinha de bom, não lhe parece, Mestre?

E Vergilio Ferreira escreveu mais tarde: «A pergunta era tão clara que eu não achei uma sombra para me esconder».

Certo é, à chegada fui atropelado por um cão qualquer. Desses que emporcalham a dignidade dos demais. E o pior: o polícia, por acaso filho meu, deu-lhe razão, eu atravessara a rua oito minutos mais cedo, incapaz de esperar pelo bicho!

 

A Herdade do Vau (em Quintos, Beja)

João-Afonso Machado, 20.01.25

Precipitámo-nos, sei lá quantos anos atrás, esses cabeços abaixo entre perdizes que levantavam de toda a parte, e só parámos na margem do Guadiana. Pelo meio, uma casa em ruínas, de generosas dimensões, completamente destelhada, guardando ainda uns vestígios de janelas e soalho.

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Estávamos na Herdade do Vau, outra vítima da Reforma Agrária, outra cooperativa falida... E um projecto logo a maquinar as ideias de um de nós, o MSO.

Na vez seguinte (na seguinte época venatória, provavelmente), já naquelas terras  esquecidas proliferavam os bardos de vinhas novas. O ressuscitar do Vau tinha começado. E a cada outro regresso mais novidades: mais casa, mais anexos, comodidades e amplitude de terreno, as primeiras produções de vinho. A Herdade, antes um sinal antagónico da presença humana, chamava gente a si e mantinha todo o seu contraste com a planície alentejana.

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O vinhedo foi uma primeira fase, procederam-no os olivais. E o turismo e as ervas aromáticas. E a charca e as garças e o Guadiana no fundo do vale sem fundo à vista, caíndo de açude para açude, remoínhando tomado de correntes como se a ganhar forças para o mergulho impossível, a jusante, no Pulo do Lobo.

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Será a atracção-mor da Herdade, o Guadiana. Tresandando a barbos de grosso calibre, mantendo vivas as mortas azenhas nos seus remansos; furioso, mortífero, se obrigado a passar entre pontões que o engenho humano lá foi apunhalando.

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O Vau é uma tortuosa orografia verde. Os planos são quimeras, as culturas inclinam a descer desde o topo das encostas e o horizonte visual é infinitamente assim. Chama-se jipe o nosso maior amigo.

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E por ali passeiam os javalis, os saca-rabos, uma apreciável colecção de predadores nocturnos. Os invernos acendem a lareira plurifamiliar,

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os verões suam, atiram-se à piscina, escondem-se onde o bafo quente não chega. E a velha casa, agora redesenhada em hospitalidade e requinte austero, reergueu a cabeça e vigia as operações no cimo do morro. É um fim de semana muito dividido entre as manhãs montesas e as tardes passeadas e conversadas.

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E, à janela do mundo, insiste o Vau em ser esse mundo perdido em verde. Na outra margem do Guadiana já é Serpa e, a quilómetros, tomo nota de uma edificação rodeada de plantio. Isolada. São os vizinhos mais próximos..

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Anoiteceu, por fim. Está a parafernália toda da cozinha alentejana a chegar à mesa. Freio nos dentes, que ainda sobra amanhã. MSO e a sua família recebem os amigos assim. O que se há de fazer?

 

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