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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

As trevas actuais

João-Afonso Machado, 28.03.25

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No tempo em que as estradas pertenciam a um comedido contigente de viaturas, e as caminhetas do Ferreira das Neves e do João Carlos Soares viajavam carregadinhas, nesses idos de saudade, os campos marginavam a via empedrada ou já alcatroada e ia-se gozosamente a Guimarães passar a tarde. Com vagar para analisar e conjecturar sobre a pesca em todas as ribeiras avistadas. A Família tinha a sua costela orgulhosamente vimaranense, viviam lá uns tantos irmãos dos Avós, muitos primos da idade dos Pais e os bastantes mais novos para brincadeiras em jardins e galinheiros. Logo em Ronfe, o prodígio de uma ilha no Ave pertença de uma das quintas. Já em Mesão Frio, na saída para Fafe, os entreténs do Tio João: a Laika, cadela da mansidão de um cordeiro, a criação de chinos, uma colecção de galinhas e patos exóticos e rijas pegas de cara às suas cabras.

Na cidade, as paragens eram raras. O castelo, sempre uma adiada promessa de visita apimentada pelo lugar vivo onde enforcavam os bandidos. O resto era o Toural, a igreja de S. Francisco, a Mumadona. Todos ainda vivos, ao invés dos Avós e dos Pais, e dos seus irmãos e primos.

E não havia que enganar: Creixomil, a estrada ladeada pelas casinhas de pedra, um piso só, o trânsito desafogadamente nos dois sentidos, o Carocha rolando tranquilo e contente por estar já às portas do seu destino.

O estranho gosto com que o mundo se auto-mutila transformou a EN206, em Creixomil, numa rua de sentido único e passeios larguíssimos em que poucos circulam. Descobri-la, naquelas mareadas artérias, só com o GPS e a ciência adjacente. A via está mais para estacionar do que para chegar a Guimarães.

Esta é, na actualidade, defendida por espessos centenares de rotundas e labirintos onde as pessoas se perdem e morrem à fome e de sede. Para nunca mais ficou o enforcamento no castelo, agora um monte imprestável de pedra além das sucessivas barreiras rodoviárias, e dos milhares de enganosas placas toponímicas que as ornamentam. Porque tudo converge para o Continente e os sucessivos acessos às auto-estradas. Não tardará o merecido castigo de Deus... enquanto a Família se vai estilhaçando, com os primos sobrantes fugindo todos com a pacatez de outrora.

 

Jardel, cão feito

João-Afonso Machado, 24.03.25

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Ainda Setembro, talvez em 2002, voltámos a Monfortinho para abrirmos a época com umas codornizes. O grupo era numeroso, excitado e ávido, e muitos os cães novos a criarem calo para as perdizes de daí um mês. O Jardel era um deles.

Organizámos a linha e principiámos. Sem dúvida, de pasmar a abundância das codornizes e a confusão que se instalou. Tiros, a berraria dos donos a chamar os cachorros tresmalhados, quando não assustados. A formação rapidamente se desfez e o Jardel, irrequietíssimo, de um lado para o outro sem parança, mas também sem se afastar. Somente assarapantado no meio daquela feira toda.

Eis, no entanto, que entre um dos seus muitos galopezitos, ele estaca de repente, todo curioso. E lentamente estica e contrai o corpo, distende-se hirto e concentrado, a pata direita erguida quase em ângulo recto... Como uma estátua!

Já eu ensacara a máquina fotográfica e empunhava a espingarda. Aproximei-me, o Jardel sempre estático, cheguei-me mais, - Ssstt! - ele dá um passinho e a codorniz junto a si ergueu o voo. A arma fez o que lhe competia e a peça caiu do outro lado de uma vala. - Vai Jardel, busca, traz cá!

O Jardel foi, buscou e trouxe a codorniz à mão. Oh felicidade maior! Um amigo (um decano dos epagneuls)  que vinha ao lado e a tudo assistiu, pachorrentamente comentou - Pronto! Tens o cão feito!

Fora um dos que mo oferecera nos meus quarentas...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.03.25

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Lá parti para Lisboa sempre contrariado, mesmo porque as razões da ida eram as piores. De tal modo, avisei previamente a minha amiga e deixei escorrer na sua loiraça cobertura as minhas dores todas. Com a maior surpresa, ela esperava-me à chegada em Santa Apolónia.

Foi o beijo (às vezes são dois, outras um só...), o abraço (ora até que enfim...), um apoio de que lhe ficarei sempre grato. Caminhávamos na gare, eu ia narrando os tristes acontecimentos, o movimento era menor e, subitamente, a minha amiga pulou na vertical e soltou um grito estridente - A terra tremeu! - garantiu ela, - A máquina mexeu-se toda!

A "máquina", percebi, era a locomotiva solitária que eu acabara de fotografar para matar o vício. Assim como quem atira a uma perdiz já no outro lado do mundo. No dizer nervoso de quem agita as pulseiras a tilintar,  - ocorrera um sismo! Coisa muito em moda em Lisboa...

Bah! - saiu-me do espírito, Nada fazia sentido, a minha terra minhota é dura, granítica, e por isso a primeira percepção havia de ser comigo, não com a agudíssima amiga.

Mas, jurava-me, a dita "máquina" abanara-se, tinha saltado até. Fora um tremor de terra!

Ao lado, um feminino pelotão de limpeza composto de gente habituada ao iminente perigo dos leões, repousava na maior calmia. Mais ninguém aparentava dar pela ameaça. Toda a Capital parecia dormir no seu frenesim de sempre. A minha amiga, contudo, não sossegava. E menos aceitava a locomotiva não tivesse dado um traque, ou algo parecido.

Acabei sugestionado depois de rever a fotografia da "máquina". E se tivesse sido um terramoto, uma simples transidela?

Então pensei no Moedas, no Marquês de Pombal, no arquitecto Maia, e nas imobiliárias, na Lei dos Solos. Foi a minha vez de tremer. E se ocorresse, de seguida, outro maremoto? Se ele fosse além de S. Bento e alcançasse Famalicão, o que nada me conviria?...

- Oh minha amiga, faça a fineza, leve-me daqui depressa!...

E marchámos. Regressei ao Norte ainda nesse dia, aliviado, fugindo de locomotivas puladoras e maremotos à bica.

 

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