S. Martinho de Anta, o berço de Torga
«Sinto o medo do avesso», é somente assim o poema «Ignoto» do genial literato, Nobel moral da nossa contemporaneidade. Nado em casinha humilde em S. Martinho de Anta, do concelho de Sabrosa, às portas do Douro vinhateiro.
Os seus afazeres de médico em Coimbra terão dado um primeiro contributo, quem quer acrescentou o restante - a morada pobrezinha fez-se challet, já recebe com requinte; no portão, um fac-simile da sua assinatura de literato. Ir a S. Martinho de Anta é absolutamente necessário à reviravolta dos seus receios de finitude, um produto do Torga propalado como um embrulho do Positivismo.
De Vila Real, por Constantim, é o instante estradal de uma freguesia mais. Não mentirei se disser com entrada pela Rua do Fundo do Povo (ou seja, do povoado), onde a pedraria já salta em beleza. Envolvendo-a, as serranias por «Paisagem» - «Hirtos, os montes velam/O cadáver gelado do meu sonho./Num desespero íntimo, contido,/Que seca na raiz toda a verdura,/Velam seu corpo astral, caído/Numa vala sem fundo de amargura.»
E, de rompante, o Largo do Eiro. Amplo poiso de uma feira àquela hora já a desfazer-se.
Em redor, a fonte e o tanque para o gado, para as gentes, água benta das moléstias do braseiro nos "três meses de inferno"
e um casario portentoso, cheio de pose e conservação
neste lugar central dos "antenses" que ali se reunem, conversam e assistem ao passar dos seus dias de uma terra dura, pouco amável, sôfrega.
(«Frios versos de inverno.../Que musa me regela/o coração?/Ah, quem me dera aquela/Ida e primaveril inspiração!») Pois! Assim depressa cincelando as veias - o "cincelo", tão da escrita de Torga - como a esturricá-las mortalmente.
Este dia o nevoeiro fez-se frio entranhado. É preciso um homem chegar lá para sentir saudades das luvas. No fim da rua, semelhando um fantasma, a igreja paroquial e o cemitério, resguardado mais além um pouco.
(«É um cemitério pobre./Fica à beira da estrada,/E qualquer tempo o cobre/Duma sombra de nada./Vão a enterrar ali/Pobres almas singelas/Que viveram aqui,/E só ali são elas.») Como a de Miguel Torga, que escouceou panteões e jaz na sua S. Martinho de Anta, em campa rasa.
Nunca poderia ser esta uma visita turística, mesmo porque não faço turismo apenas sinto com os olhos e com a escrita depois, talvez. Contando pedras, como as da Rua das Quintãs, vozes e gestos, horizontes.
«A vida é feita de nadas:/De grandes serras paradas/À espera de movimento;/De searas onduladas/Pelo vento;/De casas de moradia/Caídas e com sinais/De ninhos que outrora havia/Nos beirais;/De poeira;/De sombra de uma figueira./De ver esta maravilha:/Meu Pai a erguer uma videira/Como uma mãe que faz a trança à filha.»
Assim dei azo a que Torga falasse da sua "belém" em estrofes que nela escreveu nos seus Diários. É o nosso orgulho, o Mestre da Literatura do nosso tempo, do tempo em que vivemos. E está, obviamente, no pódio da toponímia local. Dispõe ainda de um "Espaço" do risco de Siza Vieira
uma fartura de imagens e reproduções de escritos e episódios seus. Deste escritor e médico que, na sua grandeza e na sua humildade, viveu sofrendo a dúvida da Eternidade que agora sabe ter alcançado...