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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Extractos de um diário de bordo (II)

João-Afonso Machado, 28.04.25

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Navega-se de noite e o janelão da cabine denuncia um luzeiro continuado, é a par da costa francesa que o navio segue. E numa curva apertada, muito madrugadora, Génova a poderosa de outras eras, consta que o maior porto mediterrânico, a pôr-se muito à vista, muito compacta, a molhar os pés no mar e escalando íngremes encostas, como se pescadora e pastora também, na vastidão das montanhas e num cenário que extasiava os passageiros na amurada.

Assim outro desembarque, uma beliscadela, marotice de vistas, no fortuito desconhecido. A Stazione Marittima dotava-se de acessos tranquilos e, como toupeiras, foi de metro a rápida viagem até à Piazza de Ferrari, a principal genovesa, onde a municipalidade se sedia e o fontenário, com os seus repuxos, parece salpicar a terra inteira.

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Está-se na capital da Ligúria, no berço de Colombo, na pátria dos mais audaciosos navegadores-mercadores desde séculos imemoriais. Uma República que guerreou e  venceu a de Veneza e depois foi tragada por Napoleão. E o império dos antigos doges, da intriga politica e negocial, dos cãmbios e da insídia,  do veneno deitado na sopa. Mas este domingo dormindo pacatamente em casa, afora o comércio quase todo de portas abertas aos turistas. Está-lhes no sangue, outrora as sedas preciosas, agora um cansaço de marcas famosas de vestuário, ostentando orgulhosamente os seus brasões sob as arcadas renascentistas das mais movimentadas artérias. A mente tenta recolher aos molhos quantas imagens conseguir captar num tempo que adivinha curto.

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Porque tal lhe impunha o pé numa indiferença revoltante pelas dezenas, centenas de bocados de História desprezados a perguntar - Então quando?... - quando haverá outra oportunidade de ir por eles, trazê-los em imagem ou em notas do bloco. Foi muita a pedraria, as ruas, as vozes vergonhosamente deixadas entregues ao seu destino, sem um registo. Por isso, ao menos, um regresso mais dispendioso mas com olhos, num taxi e com um taxista que parecia uma enciclopédia; porém num trajecto demasiadamente curto até à Stazzione Marittima.

Assim a mente não desenvolveu enredos nem se saciou. Com o sol na menos propícia posição, já a bordo, apanhou com a câmara A Lanterna, o símbolo de Génova, um farol com 77 metros de altura, outro record europeu.

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E ficou esperando qualquer coisa surgisse: uma expedição em demanda dos sarracenos, a chegada de riquezas do Oriente, punhais escondidos entre vestes sumptuosas... De vista fixa no casario e naquela cascata encostas abaixo. Foi quando  o navio, sussurrantemente, despertou da sua letargia e se notou já deslizava, manobrava.

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Revelava o lado portuário mais moderno, essa noite descalçaria a bota italiana até meio. Génova foi-se afastando num lento e pesaroso adeus.

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A bordo, os jaccuzzis atraíam multidões promíscuas.

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O buffet também, assim como uma certa cabine em que o vapor onde viajava Torga adolescente avistava já terras do Brasil...

 

O sinal da Halina

João-Afonso Machado, 25.04.25

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Sentado num banco da plataforma, muito no fim da estação, abriu o saco de pano dir-se-ia em busca de um naco de pão, um pedaço de toucinho. Foi, porém, uma velha máquina fotográfica que a sua mão trouxe à luz e poisou nas suas pernas.

Trocara-a há muito tempo, numa loja de velharias, por umas miniaturas que sobravam na sua colecção. Ignorando sempre se a máquina funcionaria ou não. E um dia, tão mais tarde, resolveu experimentá-la, tirar uns retratos a ver se a Halina vivia ainda. Mas só nove anos volvidos, topando-a esquecida, jazendo numa estante ainda com o rolo na barriga, apanhou o comboio e levou-a a quem sabe do ofício. O diagnóstico foi positivo, a deixar-lhe saudades. A Halina estava bem e - Tome lá a revelação! - as imagens captadas viajavam para trás, até Bragança, no derradeiro Verão da existência da sua (dele) Senhora, que a doença mastigara lentamente até ao fim.

A fotografia, muito tosca, com uma vaga expressão do castelo bragantino ao longe...

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As demais já não eram identificáveis, salvo umas decerto da serra de Montesinho. Há oito anos sem Ela, a Senhora, apenas com a Halina afinal saudável, resistente como todos os primitivos e igualzinha à do Pai, também já levado pelo tempo, o Pai que, por acaso, nada se interessava pela fotografia. Ela, a Senhora, e o Pai, duas despedidas de Abris já distantes... Recolheu a Halina no saco e deu-lhe graças  pelos bons momentos trazidos à tona. E permaneceu esperando o comboio, como quem espera a sua vez também.

 

Vicissitudes ferroviárias

João-Afonso Machado, 19.04.25

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O relógio informa são treze horas, algo embaraçado, bem sabendo que os seus ponteiros terão de completar mais cinco rotações até à partida do comboio. A gare encolhe os ombros, desinteressada, e faz a esmola de dois pombos arrulhando nos cornos de uma locomotiva sozinha.

Dois pombos - só dois! - para cinco horas de dor! No mais, as informações do altifalante e a juventude de uma ou outra estrangeira bonitota, regalo de breves segundos de espreita. Depois a fome, a bucha, um traço de tempo menos tormentoso, a distracção de um telefonema. Mijar? - custa cinquenta cêntimos, há que deixar a vontade chegar ao limite, dois xixis um euro e uma empregada de limpeza, a cobradora, implacavelmente intransigente.

É, tudo empancou neste infindo muro de lamentações. Os pombos piraram-se, agora é um pardalito com algo no bico, anda a fazer ninho.

A pequena sofrida, a escrever aceleradamente num caderno com a sua esferográfica preta, também ela aparenta ser um poço de curiosidade em face do vizinho. Mas quando e para onde esvoaçará?

E assim os xixis não se espevitam; assim o tempo finge alargar a passada. Já só faltam quatro horas e meia para o comboio...

 

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