Extractos de um diário de bordo (II)
Navega-se de noite e o janelão da cabine denuncia um luzeiro continuado, é a par da costa francesa que o navio segue. E numa curva apertada, muito madrugadora, Génova a poderosa de outras eras, consta que o maior porto mediterrânico, a pôr-se muito à vista, muito compacta, a molhar os pés no mar e escalando íngremes encostas, como se pescadora e pastora também, na vastidão das montanhas e num cenário que extasiava os passageiros na amurada.
Assim outro desembarque, uma beliscadela, marotice de vistas, no fortuito desconhecido. A Stazione Marittima dotava-se de acessos tranquilos e, como toupeiras, foi de metro a rápida viagem até à Piazza de Ferrari, a principal genovesa, onde a municipalidade se sedia e o fontenário, com os seus repuxos, parece salpicar a terra inteira.
Está-se na capital da Ligúria, no berço de Colombo, na pátria dos mais audaciosos navegadores-mercadores desde séculos imemoriais. Uma República que guerreou e venceu a de Veneza e depois foi tragada por Napoleão. E o império dos antigos doges, da intriga politica e negocial, dos cãmbios e da insídia, do veneno deitado na sopa. Mas este domingo dormindo pacatamente em casa, afora o comércio quase todo de portas abertas aos turistas. Está-lhes no sangue, outrora as sedas preciosas, agora um cansaço de marcas famosas de vestuário, ostentando orgulhosamente os seus brasões sob as arcadas renascentistas das mais movimentadas artérias. A mente tenta recolher aos molhos quantas imagens conseguir captar num tempo que adivinha curto.
Porque tal lhe impunha o pé numa indiferença revoltante pelas dezenas, centenas de bocados de História desprezados a perguntar - Então quando?... - quando haverá outra oportunidade de ir por eles, trazê-los em imagem ou em notas do bloco. Foi muita a pedraria, as ruas, as vozes vergonhosamente deixadas entregues ao seu destino, sem um registo. Por isso, ao menos, um regresso mais dispendioso mas com olhos, num taxi e com um taxista que parecia uma enciclopédia; porém num trajecto demasiadamente curto até à Stazzione Marittima.
Assim a mente não desenvolveu enredos nem se saciou. Com o sol na menos propícia posição, já a bordo, apanhou com a câmara A Lanterna, o símbolo de Génova, um farol com 77 metros de altura, outro record europeu.
E ficou esperando qualquer coisa surgisse: uma expedição em demanda dos sarracenos, a chegada de riquezas do Oriente, punhais escondidos entre vestes sumptuosas... De vista fixa no casario e naquela cascata encostas abaixo. Foi quando o navio, sussurrantemente, despertou da sua letargia e se notou já deslizava, manobrava.
Revelava o lado portuário mais moderno, essa noite descalçaria a bota italiana até meio. Génova foi-se afastando num lento e pesaroso adeus.
A bordo, os jaccuzzis atraíam multidões promíscuas.
O buffet também, assim como uma certa cabine em que o vapor onde viajava Torga adolescente avistava já terras do Brasil...