A menina Simpatia
Para o bem ou para o mal, um dia no Centro de Saúde é uma lição de vida. (Sob o ponto de vista humano, não o institucional.) Porque essas longas horas de espera desendurecem os corações e libertam as linguas e a imaginação.
A senhora sentada na cadeira ao lado principiou a conversa moderadamente. Ou terá respondido somente a qualquer comentário? Não importa, conta sim, narrou o indispensável, usando termos pensados e cerimoniosos. Foi acompanhada no mesmo ritmo, claro, ambos os assentos eram civilizados por igual, conquanto incómodos, e a manhã já deixara para trás metade de si. E, mesmo assim, era ainda o início.
De meia idade, a senhora não se evidenciava por alguma especial razão mas constituía um todo agradável e olhava de frente, conseguindo, no entanto, manter uma indecifrável expressão. Com o que prendia a atenção e subreptíciamente enchia de tonalidades pormenores tão insignificantes como uma pulseira, um relógio, a blusa, o penteado ou os longos dedos das suas mãos.
Concluindo o interlocutor não era um selvagem, um "trepador", soltou-se mais, cresceu em amabilidade, falou de si, das suas vivências. Por um instante foi poeta e quis-se a descer os degraus da falésia, que a aguardavam as espumas de todos os mares e o além infinito. E depois tornou a um tom mais ríspido, insurgindo-se contra as normas sociais, os calendários sociais (como se o relógio fosse um mero adorno), aos quais opunha a originalidade dos seus.
Mas sempre simpática, de resposta muito pronta e colorida de ironia. Na hora do almoço, havia confiança e cumplicidade - Vá lá comprar uma bucha para os dois, eu guardo-lhe o lugar, é o meu marido, incapacitado de se manter de pé...
Ficou clara a sua dieta alimentar. Tinha gostos muito próprios, identitários, registou ele. E algumas conclusões já se formavam. Até porque uma senhora que atravessa tanta conversa sem falar no marido e nos filhos é porque não os tem.
Depois havia histórias bizarras, memórias redivivas sempre sob os acordes da poesia. Implicitamente, um mundo de sonho e fantasia, sem mais personagens, um discurso feito de sorrisos quase esbatidos, talvez de apelos, quiçá uma obra por construir ainda.
Nada teria importância não se desse o caso da curiosidade despertada, de um modelo literário que ali se sentara pertinho, essa tremenda manhã - Mas lê, escreve, passeia, interessa-se, e ninguém a aprecia, comenta, acompanha?
Retraía-se, desviava as interrogações, intitulava-se livre e alodial, imune a conluíos. Ela e só ela! Transbordando, em sua consciência, de um coração bom.
Desistiu. Não era tolo e leu naquelas palavras um ente que se carpinteirava noutro ente. A tal obra em construção, distante talvez da perfeição pretendida. Oxalá alcançasse esse desiderato... Um dogma fora proclamado: estava ali um passado a rectificar, aplacar, digerir. Enquanto não, a senhora - a menina - seria sempre um enigma indecifrável.
Chegara a hora da consulta. Ela primeiro, ele de seguida. E quando saiu da sala deparou com o seu sorriso que o esperava. - Então, está tudo bem?!
Comoveu-se. Segurou-a pelos cotovelos, encarou-a de olho húmido e só disse - Obrigado! Em forma, menina Simpatia!
Despediram-se provavelmente para sempre. Ficara, todavia, a amizade mesmo sem que os cuidados da menina Simpatia houvessem recebido, naquela atrapalhação, a devida correspondência.