A Praia da Murtinheira em Quiaios
Lembro-a bem, ainda incipiente, há longos anos, uma casita aqui, outra ali, perdidas no sopé da serra da Boa Viagem. Justamente porque uma dessas casitas era propriedade de um casal amigo de uns tios meus, os quais já lá tinham comprado um terreno para construir, apaixonados pela beleza do local e pela mansa vastidão da praia.
Pensavam os tios... A suposta mansidão findava na borda da água, exactamente, onde surgiam ondas repentinas de bocarra aberta, prontas a embrulhar os banhistas nas suas voltas inclementes. Assim a Murtinheira foi ficando na mesma, de verão em verão até ao esquecimento total e à venda do terreno em que os tios programaram a fiel reconstituição do Éden, com parreiras e tudo.
Muito recentemente atravessei a serra. E num miradouro, frente ao mapa enorme em azulejo, dei com a Murtinheira um nada a sul de Quiaios. Já crescidota, semitapada pelo nevoeiro, enxuta de gente, gesticulando por uma romagem, meia horita de oração e areal. Foi como me fiz aos buracos do caminho e alcancei o omnipresente passadiço de madeira.
Foi logo o instante de ver dispersos, isolados, os corpos mudos tostando em recolhimento e contemplação. Não esquecerei esse que não fotografei da escultural senhora embrenhada na sua leitura e muito desataviada. Imóvel no calor da duna, só me ocorreu - igualzinha às serpentes cheias de cor e encanto que, num fulgurante menear de cabeça, mordem, matam e devoram. Ao que eu quis preservar o meu filho mais novo, rapaz imprudente, logo conduzido para o mais cerrado do nevoeiro, já sobre a areia molhada. Onde o nadador-salvador se protegia entre paraventos e guarda-sóis e alguns pares de pés recebiam os unguentos espumosos das ondas espraiadas.
Fui contando o tempo para trás. O oceano como se ainda aguardasse um titã a desafiá-lo. Os raios solares como se ausentes, cheios de manha, despejando todos os seus males nas nossas costas. O meu filho atrevendo-se ao semicúpio, eu estoicamente guardando imagens, prescrutando o horizonte perdido, apontando ao cargueiro fantasma que teria zarpado da Figueira da Foz.
E na extremidade da praia o surfista. Navegando entre cinzentos e traçados brancos. Mas capaz de se equilibrar na prancha em que se demorava sentado à espera da onda eleita.
Resolvi aproximar-me para um retrato mais em pormenor. Mas fui demasiado lerdo.
Vinham já de regresso - não um mais dois artistas, o outro guardaram-no as brumas até ao fim...