Águas transbordantes
As cheias na minha terra são um lago de visitas bem acolhidas. Vêm com elas as cegonhas, os corvos-marinhos e as restantes aves aquáticas. Os campos transformam-se num espelho e na estrada, junto à ponte, o moleiro encolhe os ombros mesmo porque há décadas entregou as moendas às silvas. (E foi embora, talvez seja agora apenas uma triste memória...) As águas, crescendo, entram e saem por janelas estilhaçadas da azenha e reina um certo nervosismo entre os canitos do quintal adiante, pressentindo a força da corrente, uma escorregadela e seria um banho até ao mar oceano. É bem certo, não faltarão galinhas afogadas em estupidez, encalhadas nas ramagens que a inundação alcançou, o olhar amortalhado de branco e os milhafres esperando o momento de garfar o bife...
E não há ano que não tenha sido o pior de todos, coisa nunca vista assim, o acastanhado abissal de tanta revolta a matar as margens. - Onde está o nosso rio? - interrogam-se as velhas, com o dia todo para se encherem em comentários. E muito no seu íntimo carpideiro não desdenhariam uma tragediazinha a montante, nem que fosse a vaca do vizinho boiando em torrencial velocidade; saborosa levada de ais! e uis! e apelos aos santos. Um falatório que submergiria as cegonhas, os corvos-marinhos, as mais aves aquáticas, com excepção das enfeitiçadas águias-da-noite, que é como aqui chamam às garças reais - sempre estáticas, silenciosas e imunes.
De passagem numa veiga próxima, dei hoje com uma cegonha que mais parecia uma avestruz. Pois já tenho para sábado: apresentá-la a Dona Mécia; e se andarem por lá narcejas volto no domingo, de galochas e com outros argumentos...