Curiosidades de vizinhos
Nessa noite quente de há dez anos, urgia dar uma volta, arejar. E fomos, rua fora, tanta gente já ausente em férias, lugares calados onde somente, a páginas tantas, ouvimos o miado infrene de uma gato afogadiço. Fui no seu encalço: o bichano, menor do que um esquilo, sofria pavores debaixo de um carro. Apanhei-o e bati às portas mudas até que um transeunte, com aliviada expressão, quase implorou - Leve-o, leve-o! - E eu perguntei à minha Senhora se era para levar.
Que sim, com certeza. Ele sossegou no meu colo, sentiu forte a entrada num lar e... adoptou-nos!
Correu muita história. A começar pelo baptismo - "Teco", de sua graça; mas para mim sempre o "Gato" ou o "Gátio", consoante. Dormia na nossa cama e fazia serão ao colo da madrinha.
Quando a morte venceu a vida, o Gátio viu-se reduzido à minha companhia. Eramos bons amigos até porque (imposição dele com patadinhas no meu nariz), às seis da manhã, Sua Ex.cia era servido gozar de um magnífico primeiro-almoço.
Já Egas nasceu em berço de ouro. Filho de pais do melhor pedigree. Assaz viajado, correu Portugal de Bragança ao Alto Alentejo, frequentando os nossos quartos, assistindo entusiasmado ao Europeu de 2016. Orientado por mãos femininas, contemporâneo do covid, a sua transição para o escalão dos caçadores andava ainda em estágio.
E eu sozinho com os dois. O Gátio levou-o um tumor; o Egas, a dentuça aguçada de um castro laboreiro, retalhado quando ambos disputaram a mesma cadela em cio.
Alto lá! - atirei para o ar. E busquei Dona Mécia, a sobrevivente na quinta, e trouxe-a para comigo.
Assim ficou apenas a recordação com que deparei o outro dia. O Gátio e o Egas, amigos amicíssimos, matinalmente à janela a cocar qualquer discussão de vizinhos. Parolamente à espreita pelo arrancar de cabelos. A vida deu nisto. Eu não sou de arrancar cabelos, espreito discretamente e até pode acontecer de intervir, parvoíce em que o Gátio e o Egas nunca se envolveriam.