Extractos de um diário de bordo (I)
Este é, no fundo, o relato da viagem de uma mente submissa e comandada por um pé esquerdo e estuporado. Canhestro e em fim de ciclo, sempre azedo e dorido. Ainda assim complacente, face aos rogos de quem, tão remotamente, planeara um cruzeiro no Mediterrâneo. Lá foi dando o seu assentimento, numa resmunguice que não sossegou desde a saída do lar e subiu de tom, subiu sempre, aquando da visão do navio atracado em Barcelona.
O bicho espantava pelas dimensões. Levaria a bordo o total do eleitorado do distrito de Portalegre... se não se tivesse antecipado gente de toda a Europa e milhares de asiáticos - de maior ou menor idade, algo que, por acaso, incomodava mais a mente do que o pé, desprovido de canais auditivos. Não, ao pé incomodava sobremaneira os infinitos e labirínticos corredores do 12º andar, onde ficaram, e os mais esforços a que se viu obrigado, como a seu tempo será notado.
A Barcelona que conheciam era agora gozada entre névoas, de fora para dentro, na amurada do deck, pacificamente, deslumbradamente. Já muito entardecera quando o navio largou, rumo a Marselha. Ela pouco dada a salsifrés nocturnos, ele estafado, vociferando contra a mochila, bagagem única, cedo recolheram ambos à cama.
E cedo acordaram, na altura precisa da chegada.
Houve aplausos. Mas o porto de Marselha é mais complicado - e longo e burocrático - do que um aeroporto, e nem a gratuitidade do bus para o centro da cidade acalmou o pé. A visita foi resumida e coxeada a partir da Place de la Joliette, onde choraram à passagem do eléctrico
e nada viram que os encantasse. Quer dizer: foi-se resumindo à quatrocentista Cathédrale de la Major
e ao Fort de Saint Jean, onde não lograram penetrar por cobardia e ineptidão do pé.
Por isso, também, o famoso e frequentadíssimo Port Vieux apenas circundado já num taxi de regresso ao conforto da cabine.
Para outra hipotética altura a Marselha das traficâncias, se é que ainda existe, e o que ora se perdeu da vida nas ruas e nos cais. Na hora da partida, postos na aragem fresca do Mediterrâneo (o pé, autoritário, obrigando o seu congénere direito a aguentar sozinho o peso todo), um pausado olhar sobre as elevações, já longe a zona urbana, e a neblina jogando com elas à cabra-cega.
O cruzeiro prosseguia, pois. Marselha fora esta coisinha mas o Mediterrâneo prometia tranquilidade, bom dormir e, afinal, a bordo descobriam (o mundo é uma aldeia...) a estimadíssima companhia de A Criação do Mundo do Miguel Torga, em que a mente se absorvia e o gemebundo pé adormecia.