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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Quem terá sido?

João-Afonso Machado, 15.05.23

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A tia Carlota era de idade já longuíssima e qualquer coisa lhe deu a noite passada que todos julgámos não veria esta manhã. Deitada na cama sem mostrar acordo e o respiro a apagar-se-lhe, a apagar-se-lhe. A Mãe queria chamar o Senhor Abade, mas o Pai, decerto no seu apego de afilhado, recusou levá-la na conta de perdida. - O Abade sim, mas é para uma corrida à residência paroquial, ele que faça o favor de telefonar ao doutor médico da vila, a chamá-lo. Ó depois logo se vê se já é a hora do Viático...

Eu estou em que foi o Domingos o portador do recado. E verdade se diga, o doutor não tardou, num carro de praça. O Senhor Abade mandou dizer que rezaria a novena pela tia Carlota e se preciso que voltassem lá por ele...

Parecia já meia do outro lado, a tia Carlota, e nós, os netos mais velhos, só recordávamos essa noite de inverno do Avôzinho, a sua última noite. Uma noite que nos é presente todos os dias.

Espalhados pelo corredor, a ninguém acorria recolher ao quarto, deitar-se. Era ao jeito de um medo que se espalhava mais a curiosidade por estes momentos tão misteriosos, os do fim da idade.

Até que o Pai nos enxotou. - Amanhã há muito que fazer logo cedo. A tia Carlota vai ficar bem, o doutor já lhe deu um xarope para a aliviar...

Contrafeitos, cada um volveu ao seu quarto. E o cansaço andava escondido, sorrateiro, mas era dos grandes. Assim me deito, assim me caiu o sono em cima. Eu já dormiria, mas ainda senti o afago de uma mão na minha cara e a porta entreaberta a fechar-se. Quando acordei o sol brilhava entre as frinchas da janela e a notícia corria de quarto em quarto - a tia Carlota morrera essa noite, depois da retirada do doutor e antes da chegada do Senhor Abade.

Agora é o velório, a visita dos parentes e dos vizinhos, a aldeia toda aqui dentro das nossas paredes. E vem-me à ideia e pergunto baixinho à Mãe - Mãezinha, que foi fazer esta noite ao meu quarto? - E os meus irmãos, ouvindo-me, a inquirir também - E ao meu? - E ao meu? - E ao meu?

A Mãe não tinha entrado no quarto de qualquer de nós. Nem o Pai. Quase após nos termos deitado a tia Carlota exalara o último suspiro...

 

 

(Para o Ministério do Rocambolesco, o desafio da Ana de Deus - https://rainyday.blogs.sapo.pt/tag/o+minist%C3%A9rio+do+rocambolesco)

 

 

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