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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Um lápis de carvão

João-Afonso Machado, 01.05.25

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Matutou, voltou a matutar e sorriu, abanou a cabeça. Depois escreveu:

«Meu filho - sei bem que estudaste e o mundo é hoje outra coisa diferente desta por cá. Sei mesmo que fazes pouco da nossa vida de trabalho agarrado às máquinas e ferramentas, e não deitei fora a papeleta que me deste com o número do teu telefone. E olha, cá vim à venda do Ângelo, consoante combinámos, para te ligar e conversarmos um pedacito. Sim, porque também eu gosto mais de ouvir a tua voz e, como tu dizes, melhor será quando te puder ver como na televisão, a modo de sentados à mesa, no paleio os dois. Mas sucedeu esta noite, disse o Ângelo, caiu o pinheiro velho junto à cancela das terras do Joaquim e levou tudo debaixo dele, o poste da electricidade e os fios do telefone, fora um lanço de ramada. É como estamos, à luz das velas e a escutar a telefonia. Felizmente trago comigo sempre o lápis com que risco as tábuas na serração. Andando comigo no bolso, se algum pinheiro velho o esmigalhar pouco sobrará também do teu pai, rapaz. Assim te mando um beijo e um abraço que amanhã cedo recebes seguro aí na cidade, aonde o regedor vai de corrida para mandarem alguém repor a electricidade e o telefone. Fica então para a próxima, cá guardo o teu número, e o prometido é devido logo que consertem as linhas, quando não sei.

Deita-te a benção, o teu pai muito amigo.»

 

Futurando

João-Afonso Machado, 28.01.25

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Serão duas léguas daqui à cidade e o doutor recomendou-me ar puro, ar frio, altitudes. Vivo sozinho. Sem rendimentos, apenas com o pecúlio que a Mãezinha me deixou à sua morte, escondido numa caixa de folha cada vez mais leve, quando soará, enfim, a oco? Assim fiquei espreitando por um canudo as montanhas e me ocorreu este prédio de dimensões sem igual, à saída da povoação, junto à estrada para o norte.

Obra do Comendador falecido o ano que passou. Para que quereria o Comendador, um solitário também, ele e as suas três mulatinhas, para que quereria ele, na sua terra natal, semelhante casarão de rés-o-chão e dois andares empoleirados, - não sei. Mas nele loquei um quarto no topo com varandim, onde aqueço os ossos ao sol, conto as grosas de cabeças de gado nas várzeas ou então vou oferecendo os meus brônquios aos muitos picos serranos para as bandas da fronteira.

Porque o doutor, com as suas pancadinhas no meu ombro, a encorajar, não sabe que eu sei que padeço de tísica. Conheço bem o que me espera e não tardará o dia em que as forças me falhem para subir esta escadaria infinita...

De quando em vez, mais sonoro que o meu catarro, o trangalho de quaisquer automóveis para aqui ou para ali. São os meus melhores momentos de distracção, aquela velocidade toda, a poeira levantada, o rasto de fumo, o chocalhar das molas... E eles multiplicam-se, tem marés que passam dois e três numa tarde apenas. Tempos virão em que hão de ser às dezenas, todos espremendo os claxons, zunindo como foguetes por esses caminhos fora.

Mas então eu já não estarei cá. Já os vermes me terão comido os restos deste meu cansaço, depois de uma curta passagem pelo asilo aqui ao lado, mais uma benemerência do falecido Comendador.

 

Um, dois, trinta minutos de jazz

João-Afonso Machado, 23.11.24

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A tarde toca e a multidão não debanda. Ouvem-nos ainda, a nós os três, tolos andados pelo planeta e chegados com alguns bocados de jazz na memória do ouvido. O que baste para o repertório de uma horita, talvez mais, e sempre vai valendo a pena, soam os metais das moedas sem a percussão dos impostos.

Velozmente, ou nem tanto, somos velhos. Hoje pedintes, com meios tocados de troca, amanhã esfomeados, nós os três, doutorados em sol e chuva e nas muitas teorias indiferencialistas. É assim, já não poderá deixar de ser assim.

Escuto e oiço aplausos. Trota menos mal a coisa... E por segundos sonho o sonho da fama e dos cachets bem alombados. Acordo num instante com a caixa das esmolas à vista. Sim, as esmolas, todos os dias as esmolas, a sopa da noite e uns copitos de vinho a aquecê-la...

Gozámos muito a vida, eu fui ferroviário até ser preguiçoso de profissão. Tão digna com outra qualquer. E bebi-a de um trago só, no intervalo em que aprendi a soprar o trompete. Dos meus companheiros sei o nada que eles sabem de mim. As palavras são para se pouparem e os abrigos dispersam-se na cidade. As histórias, uma mera invenção nos intervalos da sobrevivência. E o órgão um instrumento por enquanto com rodas e um tecto num vão de escadas. Depois disso talvez o fim da banda e do mundo também. 

Mas quando a morte chegar - autorizado a falar por nós os três - que seja breve e muito eficaz. Com cada um às costas, correndo porta fora. E a Eternidade em que não acredito, algum passante a sustentará pela saudade, acima dos torrões que nos submergirão no oceano dos ignotos e esquecidos da crueldade do tempo.