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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Roda 20

João-Afonso Machado, 20.09.24

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Está lá há quatro dias, a minha bicicleta... Há quatro dias apeado e triste, vendo-as passar por mim aos bandos nos passeios, na rota da praia, nas tardes todas.

Tudo por causa do maldito furo e do pneu careca a substituir. E do Sr. Barros da oficina ao lado da ponte, sempre a dizer, a jurar e a mentir - Amanhã está pronta, rapaz. Não houve tempo, amanhã depois do almoço...

E eu volto e não está pronta. Nem o furo, nem o pneu novo, nem o guiador ao contrário, para ficar como as bicicletas de corrida, nem os punhos que já escolhi, punhos de mota com protectores.

Sem guarda-lamas, sem mais atavios, a minha bicicleta roda 20 até voa. O recorde da volta ao circuito está em três minutos e eu já consigo os nove. Com o serviço que o Sr. Barros não despacha deverei baixar logo para os seis ou sete e o resto é continuar a treinar...

Mas as motas passam-me à frente. Dentro da oficina do Sr. Barros, quero eu dizer. É trabalho melhor pago e esses nabos da Póvoa, o Ricardo e o Mário Emílio, não despegam a guedelha dali, afinam os motores, inventam escapes barulhentos e espelhos marados. Para irem armar-se defronte à praia à pesca das pequenas.

Ouvi hoje, uma peça nova encomendada ainda demorará a chegar. Ora bem! Pode ser que haja assim, finalmente, uma vaga para a preparação da minha máquina imbatível. Ainda darei autógrafos como o Joaquim Agostinho!

 

A Senhora D. Beatriz do Chouso

João-Afonso Machado, 10.07.24

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Há sempre o telefonema prévio em que a Senhora D. Beatriz, com uma humildade impositiva, se anuncia para outra visita. Que gostaria de vir - logo: vinha! - tomar chá com a Avó. A casa agita-se em remorsos de aparições não retribuídas porque a Avó não dispõe da caleche, como a senhora D. Beatriz se desloca do Chouso até cá.

- Ó Fernandes, toque isso para a frente, vamos a Santiago!

O Sr. Fernandes sabe para onde empurrar as duas mulas, aliás bem conhecedoras do caminho. A Senhora D. Beatriz passa os dedos pelo alvo colarinho rendilhado e molhado do calor e alça a ponta da saia no patim para o assento. Traz invariavelmente a sua sombrinha. E a parelha inicia, sempre sem fim, o seu bonito trautear calçada acima. São estas as veras horas da vida com os sinos a baterem as três, hora de Cristo Crucificado. Já arfam as alimárias na encosta que antecede a terra batida e esburacada. Uma meia-hora de caminho, até ao nosso terreiro enfim.

Recebêmo-la repenicadamente. (- João Afonso, cumprimente a Senhora D. Beatriz! - como se fosse preciso avisar e eu não preferisse o beijo na mão aos espetos do afiado colarinho lá num alto a que não chego e onde posso morrer apunhalado.)  A Tia imergida em tratos de cházinhos, nublada, preciosista, e a Avó, de olho nela, a encolher os ombros... - Assim nasceu... - congemina - ... assim viverá os seus anos todos.

A Avó é como não há outra. Não se armadilha com colarinhos, gosta dos beijos do seu neto e afilhado e sabe imenso de galinhas poedeiras, de pintos e patinhos saídos do ovo. Nunca a vi senão de negro vestida porque não conheci o meu Avô que tão precocemente a deixou viúva... Sobem as escadas e entram as Senhoras, por fim... Conheço de antemão a conversa, muito em redor do milho, das vindimas, dos preços e das jornas, assuntos alheios à Tia...

E cá em baixo, o Sr. Fernandes, farto dos protocolos, - Ó menino, trepe, trepe!... - convida, e eu pincho nas molas da caleche e ele - eia! - estala o chicote e  vamos do terreiro à vacaria - toc, toc, toc, - e regressamos após uma extraordinária manobra de marcha-a-ré com as mulas novamente em caminho neste meu primeiro quilómetro a bordo de uma traquitana. 

 

Audácias de peão

João-Afonso Machado, 11.06.24

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Lembro-o aos domingos, as tardes inteiras a jogar cartas com o meu falecido avô. Era eu gaiato descalço, correndo rua abaixo com o aro e a verguinha enganchada a guiá-lo.

Criei-me e casei, enquanto o Sr. Porfírio envelhecia no mundo só dele, cauto de conversa e de dias diversos uns dos outros. Mas há de ter sido o seu pai, ferrador, quem lhe tirou o medo ou lhe deixou a bengala. Bem sei, os automóveis ouvem-se a rugir ao longe e buzinam a anunciarem-se, e a gente mede o tempo. Mas as curvas rasteiram as distâncias, disfarçam ecos e velocidades, o piso empedrado escorrega como sabão e uma passadeira não é um castelo. O Sr. Porfírio teima, insiste, coxeia indiferente na travessia da rua. Logo depois da curva. E eu é como se me soasse aos ouvidos o chiar dos travões, o tropel da chaparia cromada colhendo o Sr. Porfírio, a sua bengala e a sua saca, o Sr. Porfírio levado nos ares sem um ai!, sem um minuto mais, sem um susto sequer, já a caminho do Céu. Tão depressa, tão depressa, que a ambulância dos bombeiros, quando chegou, nem deu com ele.