Disparos de memória afinada
Long time ago, os mesmos de sempre, atentíssimos, povoavam as margens do ribeiro com pedaços de bambu na ponta enchouriçados de gordas minhocas enfiadas em nylon. Pescavam à certela, como se dizia. Introduziam esses cachos de minhocas nos intertestícios das pedras à espera que um eiró lhes abrisse a boca e se engasgasse no fio; depois era içá-lo da água, agarrado às minhocas, ainda a tossir... A gente observava a arte e sonhava... porque o ribeiro, além de enguias, era só cobras, ratas de água, de peixinho nada e a cana e o carreto dormiam o longo sono que precedia as férias.
Um dia, inconformado, chamei o filho da caseira, o A. (que a doença levou aos 50...), e disse-lhe, iriamos ribeira abaixo até encontrar um lugar onde lançar a linha. Nem que fosse já em Vila do Conde, na foz do Ave! E partimos de bicicleta, eu na minha roda 20, ele na pasteleira que herdara do pai. Corremos duas freguesias observando as águas, cheirando-as. Foram uns tantos quilómetros, mais os interrogatórios da praxe pela vizinhança.
Em certo momento, passada a via férrea do Alto Minho, uma várzea ampla e um troço largo, represado, profundo, cristalino, do ribeiro. - Aqui tem de haver peixe, nem que a gente o traga para cá! - E toca a desembrulhar as canas sob uma ramada bem podada, já a dar sombra.
Estávamos nisto e nos nossos doze anitos, dois estampidos de caçadeira para o ar, e o cair dos bagos de chumbo sobre a ramada. O A. calçou a bicicleta no ombro e desarvorou campo fora em impressionante cavalgada. Eu principiei a arrumar os meus anzois e boias, a recolher a linha, a guardar a cana. De uma casa não distante descia o carreiro um vulto de fato escuro, gravata, o chapéu às três pancadas e a arma no braço. - Então o que é isto?!
Expliquei-lhe que isto era pesca, de livre prática nos ribeiros e que nada estragáramos no seu cultivo. Não quis saber. Cheio de autoridade mandou-me embora e a primeira coisa que fiz, chegando a casa, foi inquirir a nossa Conceição - quem seria o figurão, o irmão dela (o bom M.!) vivia para aqueles lados, não poderia informar-se?
Não custou saber, era o Fontes, um jagunço local que a terra já cobriu há muitas décadas e gostava de pregar estes sustos à rapaziada, ser o reizinho do seu quintal. Asseverava-me o M. - O menino esteja descansado, eu falo com ele. - E foi como foi. Uns dias depois - O menino pode ira à pesca à vontade, ninguém mais o incomoda. - E nós voltámos e lá fisgámos umas pardelhas, pexinho miúdo que me ajudava a chegar mais depressa às férias grandes, a povoar de sonhos o trajecto até lá.
Passei recentemente no território do Fontes, a beber estas saudades que, dizem, nos descontam alguns anos. Mas o Fontes não deve ter deixado herdeiros. A esmerada ramada afogou-se em matas de choupos ou salgueiros. As silvas tragaram o leito da ribeira e as águas parecem ter sumido, nem o inverno lhes deu mais folego. Não, querendo pescar, terei de voltar à minha roda 20 e descer mais umas freguesias com os respectivos argumentos de resposta aos Fontes da nossa vida...