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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Disparos de memória afinada

João-Afonso Machado, 11.04.25

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Long time ago, os mesmos de sempre, atentíssimos, povoavam as margens do ribeiro com pedaços de bambu na ponta enchouriçados de gordas minhocas enfiadas em nylon. Pescavam à certela, como se dizia. Introduziam esses cachos de minhocas nos intertestícios das pedras à espera que um eiró lhes abrisse a boca e se engasgasse no fio; depois era içá-lo da água, agarrado às minhocas, ainda a tossir... A gente observava a arte e sonhava... porque o ribeiro, além de enguias, era só cobras, ratas de água, de peixinho nada e a cana e o carreto dormiam o longo sono que precedia as férias.

Um dia, inconformado, chamei o filho da caseira, o A. (que a doença levou aos 50...), e disse-lhe, iriamos ribeira abaixo até encontrar um lugar onde lançar a linha. Nem que fosse já em Vila do Conde, na foz do Ave! E partimos de bicicleta, eu na minha roda 20, ele na pasteleira que herdara do pai. Corremos duas freguesias observando as águas, cheirando-as. Foram uns tantos quilómetros, mais os interrogatórios da praxe pela vizinhança.

Em certo momento, passada a via férrea do Alto Minho, uma várzea ampla e um troço largo, represado, profundo, cristalino, do ribeiro. - Aqui tem de haver peixe, nem que a gente o traga para cá! - E toca a desembrulhar as canas sob uma ramada bem podada, já a dar sombra. 

Estávamos nisto e nos nossos doze anitos, dois estampidos de caçadeira para o ar, e o cair dos bagos de chumbo sobre a ramada. O A. calçou a bicicleta no ombro e desarvorou campo fora em impressionante cavalgada. Eu principiei a arrumar os meus anzois e boias, a recolher a linha, a guardar a cana. De uma casa não distante descia o carreiro um vulto de fato escuro, gravata, o chapéu às três pancadas e a arma no braço. - Então o que é isto?!

Expliquei-lhe que isto era pesca, de livre prática nos ribeiros e que nada estragáramos no seu cultivo. Não quis saber. Cheio de autoridade mandou-me embora e a primeira coisa que fiz, chegando a casa, foi inquirir a nossa Conceição - quem seria o figurão, o irmão dela (o bom M.!) vivia para aqueles lados, não poderia informar-se?

Não custou saber, era o Fontes, um jagunço local que a terra já cobriu há muitas décadas e gostava de pregar estes sustos à rapaziada, ser o reizinho do seu quintal. Asseverava-me o M. - O menino esteja descansado, eu falo com ele. - E foi como foi. Uns dias depois - O menino pode ira à pesca à vontade, ninguém mais o incomoda. - E nós voltámos e lá fisgámos umas pardelhas, pexinho miúdo que me ajudava a chegar mais depressa às férias grandes, a povoar de sonhos o trajecto até lá.

Passei recentemente no território do Fontes, a beber estas saudades que, dizem, nos descontam alguns anos. Mas o Fontes não deve ter deixado herdeiros. A esmerada ramada afogou-se em matas de choupos ou salgueiros. As silvas tragaram o leito da ribeira e as águas parecem ter sumido, nem o inverno lhes deu mais folego. Não, querendo pescar, terei de voltar à minha roda 20 e descer mais umas freguesias com os respectivos argumentos de resposta aos Fontes da nossa vida...

 

Embarcadiço

João-Afonso Machado, 05.04.25

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Vou em águas marítimas. Hei um dia contar do gigante em que me encavalitei, espreitando miniaturas e os seus contentores - matchboxes - coisinhas de a gente trazer às duzias, como as rosas da Rainha Santa no seu regaço.

Isto tudo num cenário dotado de salões de baile e de orquestra, a cujos executantes já fui autoritariamente dizendo - Se formos para o fundo, ai de quem deixe de soprar o instrumento até ao último pirolito!

Mas não creio tal suceda. Nem, tão-pouco, sejamos atacados por piratas mauritâneos. As águas andam calmas de refugiados mas, a dar-se algum encontro, que belo motivo para um motim a bordo, o comandante cercado de acutilantes garfos de prata, apontados ao pescoço, - Toca a içar aqueles desgraçados para o deck superior! É onde melhor abarcarão os ainda vastos territórios da liberdade.

A minha cabine tem janela e foi onde instalei a capital flutuante do meu reino, o centro nevrálgico de todas as observações dos outros e do seu mundo. Talvez hoje ainda vá ao barbeiro de bordo aparar a barba, realizar um sonho de sempre. Depois um pint em qualquer bar... Recomendaram-me cuidado com as bifas, não percebi porquê. Que mal poderão fazer essas flores, se não excessivamente corpulentas e tagarelas? Antes as devidas cautelas com certos bifos e quejandos, com essa fauna atrevida, toda prestável, insinuante, de calças brancas imaculadas, insistindo em pagar um copo. Espiões, obviamente, é aos espiões a que me refiro...

Sinto já a saída barra fora, o porto a encolher-se, não sei quantos andares e coisas espantosas deste planeta multipovoado. Esperam-me trabalhos esgotantes, os meus relatórios, o meu reino em plena actividade de Negócios Estrangeiros e eu, o único ministro de mim próprio. Não podia ser de outra maneira. Assim a orquestra obedeça e toque, toque, não pare de tocar até à submersão total.

 

As trevas actuais

João-Afonso Machado, 28.03.25

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No tempo em que as estradas pertenciam a um comedido contigente de viaturas, e as caminhetas do Ferreira das Neves e do João Carlos Soares viajavam carregadinhas, nesses idos de saudade, os campos marginavam a via empedrada ou já alcatroada e ia-se gozosamente a Guimarães passar a tarde. Com vagar para analisar e conjecturar sobre a pesca em todas as ribeiras avistadas. A Família tinha a sua costela orgulhosamente vimaranense, viviam lá uns tantos irmãos dos Avós, muitos primos da idade dos Pais e os bastantes mais novos para brincadeiras em jardins e galinheiros. Logo em Ronfe, o prodígio de uma ilha no Ave pertença de uma das quintas. Já em Mesão Frio, na saída para Fafe, os entreténs do Tio João: a Laika, cadela da mansidão de um cordeiro, a criação de chinos, uma colecção de galinhas e patos exóticos e rijas pegas de cara às suas cabras.

Na cidade, as paragens eram raras. O castelo, sempre uma adiada promessa de visita apimentada pelo lugar vivo onde enforcavam os bandidos. O resto era o Toural, a igreja de S. Francisco, a Mumadona. Todos ainda vivos, ao invés dos Avós e dos Pais, e dos seus irmãos e primos.

E não havia que enganar: Creixomil, a estrada ladeada pelas casinhas de pedra, um piso só, o trânsito desafogadamente nos dois sentidos, o Carocha rolando tranquilo e contente por estar já às portas do seu destino.

O estranho gosto com que o mundo se auto-mutila transformou a EN206, em Creixomil, numa rua de sentido único e passeios larguíssimos em que poucos circulam. Descobri-la, naquelas mareadas artérias, só com o GPS e a ciência adjacente. A via está mais para estacionar do que para chegar a Guimarães.

Esta é, na actualidade, defendida por espessos centenares de rotundas e labirintos onde as pessoas se perdem e morrem à fome e de sede. Para nunca mais ficou o enforcamento no castelo, agora um monte imprestável de pedra além das sucessivas barreiras rodoviárias, e dos milhares de enganosas placas toponímicas que as ornamentam. Porque tudo converge para o Continente e os sucessivos acessos às auto-estradas. Não tardará o merecido castigo de Deus... enquanto a Família se vai estilhaçando, com os primos sobrantes fugindo todos com a pacatez de outrora.