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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

No restaurante da Sra. Peliteiro

João-Afonso Machado, 10.04.23

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Foi nesta fulgurante entrada primaveril: partida ao final da manhã para Ponte de Lima em dois esfomeados carros, e os casacos atirados lá para trás, já se transpirava. O objectivo eram os rojões e o arroz de sarrabulho no restaurante do Clube de Golfe local, recentemente concessionado à Sra. Peliteiro.

A Sra. Peliteiro - de sua graça Paula Peliteiro - é actualmente (sem qualquer margem para dúvidas) a melhor mestre de culinária nas nossas lusitanas paragens. Divide-se entre este e o seu outro restaurante na Barca do Lago (Esposende) e o programa televisivo semanal em que a sua criatividade vê e fala com os (fatalmente não é o meu caso) conhecedores e aprendizes de conhecedores destes mistérios da cozinha.

A D. Paula Peliteiro andou já pelo Brasil, de onde trouxe algumas notas que bem se manifestam nos seus paladares. Mas o que nela mais gosto é a circunstância de sermos ambos da mesmíssima freguesia e os seus Pais uns bons amigos, como só aqueles de antigamente.

Por tudo, não havia como não ir felicitá-la a Fornelo (Ponte de Lima) com o grupo todo ávido de saborear os seus petiscos. A Sra. Peliteiro domina perfeitamente os falares dos sarrabulhos bracarense, famalicense, e agora o limiano também. Porque são muitas as diferenças entre todos.

O que nos chegou à mesa, à feição de Ponte, vinha em sua plena grandeza, muito prudente quanto a vinagres - fundamental! - aromatizado por quantas ervas há e carregado de bons sabores e tempêros e pedaços de carne. Os rojões e a farinheira, a batatinha assada, faziam coro com ele e o almoço foi-se alongando prazenteiro e sossegado, acarinhado por um Quinta da Pacheca tinto de 2021 também de se lhe tirar o chapéu enquanto ele se escoava devagarinho nas gorges.

No exterior o recinto do golfe respeitava as voltas naturais do que já foram leiras da antiga lavoura minhota. Os desportistas, viamos-los lá em baixo, por entre a ramagem dos sobreiros, de taco em riste a malhar nas bolas. E a conversa fluía, os pratos pediam reforço... Para sobremesa, escolhi o venerando pudim do Abade de Priscos e todos rematámos o bródio com um LBV que não desdisse do resto. Estava feito! Faltava a voltinha digestiva, mais umas arengas ao ar livre... - e um pouquito mais de convívio com a nossa anfitreã, a D. Paula Peliteiro, minha sempre amabilíssima conterrânea. Mas vinha aí outra equipa televisiva para a entrevistar...

 

A Adega Gavina

João-Afonso Machado, 14.03.23

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A memória guarda imensas coisas: já vão longe os estaleiros de Vila do Conde, sob a capela de Nossa Senhora do Socorro, de rampa aberta ao Ave. A rua era estreita e contornava a penedia (a capela no topo) e os vidros do carro, se abertos, engoliam todo o resultado da arte e da infrene azáfama dos carpinteiros: o serrim do madeirame, o ruído do cavar das enchós e do vaivém das plainas. No tempo das muitas traineiras em construção  a rolarem pelos toros, obra concluída, até ao rio, baptizadas com uma garrafa de espumante e a benção dos gestos e dizeres do pároco local. Os estaleiros estalavam de gente da faina que, naturalmente, acabava o dia na prodigalidade dos tascos a lavar as gargantas de tanta poeira e a desdizer da sua ingrata vida.

Assim nasceu, ali ao lado, a taberna do Gavina. Em 1953...

As décadas tudo mudaram. Mataram a arte dos carpinteiros e levaram o estaleiro - agora feio, quedo, metalizado - para a margem oposta, em antigos terrenos de aves pernaltas na Azurara. Na banda de cá, repentinou-se um jardim, lugar de devaneio e turismo. Talvez ainda na vida do sr. Abílio Monte, o pai da taberna do Gavina (nome de família perdido, conquanto na minha advocacia no Porto haja tido um cliente com esse apelido...), mas não demoraria a percepção da mina de ouro, o restaurante ao serviço das gentes da praia. Precisamente no sítio dos bagaços de outrora, na primeira quina de quem vem do poente para nascente.

Viu a luz o dito restaurante em 2007 com o nome de Adega Gavina. Casa rija e procurada, que se mantem aberta o ano inteiro.

Lá fui com três amigos e uma almoçarada nesta época estival dos veteranos de Vila do Conde. Enfim, três amigos traduzem uma palração muito além das poucas capacidades do meu espírito. Mas ainda assim não correu mal.

Recebeu-nos o Sr. Gabriel Monte, o actual proprietário e neto do fundador. Escolhe, não escolhe, eu esfomeado - felizmente servido como "entrada" por uma inimitável patanisca de bacalhau - perguntei pelo bife invocando a minha carência de dentes...

Que me sossegasse, era do lombo, era manteiga. Pois então, escolha feita. E o Sr. Gabriel falou com rigor. O bife (uma rara opção minha) foi um regalo. Delicioso! E acompanhado do branco da casa, sem rótulo, proveniente de Amarante, região de transição para o Douro, esperto como o alho, a oferecer-se sempre mais. O leite-creme em açucar queimado rematou o bródio e obrou as minhas pazes com o mundo. Tudo inesquecível!

Mas será de esclarecer, a especialidade da Adega Gavina é o peixe grelhado. E no Verão - o meu inverno vilacondense - o almoço ou o jantar são espécies raras e fugidias, reclamando espera, paciência e resistência. Ou a prévia reserva. Pela parte qe me toca, nada disto tenciono provar. Por isso as minhas futuras visitas apenas até Julho. Para mais um excelente almoço (palração afora) e o mui simpático e atencioso serviço. Obrigado, Sr. Gabriel!

 

A Maria da Mouraria

João-Afonso Machado, 13.01.23

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Chegados ao Martim Moniz é um instante pela Rua do Capelão até ao Largo da Severa. Em outra pátria, a do fado, e, com toda a precisão, na remodelada casa que foi o abrigo dessa mulher de voz fatal, o símbolo do Destino carregado às costas.

Mas tudo decorre agora arejadamente entre paredes brancas - há luzes, há flores... - e uma sala intimista piscando o olho ao turista. A Maria da Mouraria abre à noite, de quarta a sábado, ao som de guitarradas oriundas de ocultos amplificadores. E, uma vez à mesa, as entradas caem sobre a toalha ao ritmo em que a Susana explica os trâmites da liturgia gastronómica-fadista. Deixei que a minha companhia se inteirasse da aula teórica e ataquei logo o bom pão, o bom queijinho (a tacinha de compota de abóbora vinda com ele...), as favas cozidas e o grão-de-bico, a prova de cidra. Quando tal, a fadista e os músicos instalavam-se no seu recanto.

Margarida Soeiro é uma expressão belíssima, um sorriso que me atou à sua pessoa e uma voz com créditos firmados. Acompanham-na Ricardo Parreira, na guitarra, e na viola Carlos Viçoso. O espaço é exíguo, a fadista está entre a parede e os tocadores, de mãos amaciando as pontas do xaile; cumprimenta os presentes, olha em redor com os olhos de um olhar só dela, entristecido, misterioso, e põe as costas na dita parede. Ergue a fronte e ensaia melancólica um primeiro fado; já o segundo sai alegre, gingão, a parede soltou as costas da fadista que agora sorri, graças a Deus. Nas mesas há britânicos, malaios, tripeiros faladores, lisboetas... e um famalicense. E há fartos e sinceros aplausos. Fora só o primeito acto fadista ainda. Logo me confronto com o meu bife de atum regado com um branco Casa da Urra, alentejano da Cuba bom cumpridor dos seus deveres.

Conversámos com a Margarida Soeiro. Havia conhecimentos comuns, quase relações de parentesco (não comigo) e - assim mais perto - rendi-me incondicionalmente ao seu sorriso: ali estava literalmente prisioneiro dele.

Mas fui mantendo o duelo com o poderoso tunídeo sempre animado pelo branco cubano mai-las batatinhas cozidas e a couve branca. Galharda e prazenteiramente.

Chegava a maré do Pedro Moutinho. (É o Camané! É o Camané! - exclamava-se quase baixinho na mesa do Porto. Não, não é - é um seu irmão.) O acompanhamento instrumental era o dessa noite e a sua voz poderosa, capaz da abanar a parede a vibrar também com o arrebatamento da guitarra no último fado.

Em Dia de Reis, findavam as Festas, à sobremesa duas fatias do grande bolo que um cálice de ginjinha humedeceu. À Margarida Soeiro coube fechar o serão (sempre encantadora), o grupo britânico já se levantava, o malaio também, os tripeiros sairam discretamente. Fizemos as despedidas, não sem antes proclamarmos a Susana a Severa da actualidade, bebido que foi o último copo do Casa da Urra.