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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

O sinal da Halina

João-Afonso Machado, 25.04.25

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Sentado num banco da plataforma, muito no fim da estação, abriu o saco de pano dir-se-ia em busca de um naco de pão, um pedaço de toucinho. Foi, porém, uma velha máquina fotográfica que a sua mão trouxe à luz e poisou nas suas pernas.

Trocara-a há muito tempo, numa loja de velharias, por umas miniaturas que sobravam na sua colecção. Ignorando sempre se a máquina funcionaria ou não. E um dia, tão mais tarde, resolveu experimentá-la, tirar uns retratos a ver se a Halina vivia ainda. Mas só nove anos volvidos, topando-a esquecida, jazendo numa estante ainda com o rolo na barriga, apanhou o comboio e levou-a a quem sabe do ofício. O diagnóstico foi positivo, a deixar-lhe saudades. A Halina estava bem e - Tome lá a revelação! - as imagens captadas viajavam para trás, até Bragança, no derradeiro Verão da existência da sua (dele) Senhora, que a doença mastigara lentamente até ao fim.

A fotografia, muito tosca, com uma vaga expressão do castelo bragantino ao longe...

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As demais já não eram identificáveis, salvo umas decerto da serra de Montesinho. Há oito anos sem Ela, a Senhora, apenas com a Halina afinal saudável, resistente como todos os primitivos e igualzinha à do Pai, também já levado pelo tempo, o Pai que, por acaso, nada se interessava pela fotografia. Ela, a Senhora, e o Pai, duas despedidas de Abris já distantes... Recolheu a Halina no saco e deu-lhe graças  pelos bons momentos trazidos à tona. E permaneceu esperando o comboio, como quem espera a sua vez também.

 

Vicissitudes ferroviárias

João-Afonso Machado, 19.04.25

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O relógio informa são treze horas, algo embaraçado, bem sabendo que os seus ponteiros terão de completar mais cinco rotações até à partida do comboio. A gare encolhe os ombros, desinteressada, e faz a esmola de dois pombos arrulhando nos cornos de uma locomotiva sozinha.

Dois pombos - só dois! - para cinco horas de dor! No mais, as informações do altifalante e a juventude de uma ou outra estrangeira bonitota, regalo de breves segundos de espreita. Depois a fome, a bucha, um traço de tempo menos tormentoso, a distracção de um telefonema. Mijar? - custa cinquenta cêntimos, há que deixar a vontade chegar ao limite, dois xixis um euro e uma empregada de limpeza, a cobradora, implacavelmente intransigente.

É, tudo empancou neste infindo muro de lamentações. Os pombos piraram-se, agora é um pardalito com algo no bico, anda a fazer ninho.

A pequena sofrida, a escrever aceleradamente num caderno com a sua esferográfica preta, também ela aparenta ser um poço de curiosidade em face do vizinho. Mas quando e para onde esvoaçará?

E assim os xixis não se espevitam; assim o tempo finge alargar a passada. Já só faltam quatro horas e meia para o comboio...

 

O velho renascido cuco

João-Afonso Machado, 06.03.25

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Veio de uma história antiga, germânico de nascença. Vivendo, quase esquecido, em relojoaria que o deixou num pra lá, muito indiferente ao seu canto e à lebre e ao faisão na sua madeira esculpidos. Pior: despropositando a cabeça de veado do seu cume, um timbre sobre armas de tiro cruzadas... Em suma, estava num nicho enjeitado, uma pechincha.

Até ao dia em que as crianças engraçaram nele e no seu cantorio, e o pai deu por bem paga a peça, mesmo sem saber que comprava coisa boa, quase logo esquecida pela catraiada.

O cuco veio, porém, para casa amaldiçoada - circunstância comum nos cucos - e voou depois para um apartamento sofrido. Sempre cucando sem que importasse a sua pontualidade, as horas são nada e apenas se lhe pedia - cucasse, cucasse... E ele foi cucando e fez ninho (o que não é costume dos cucos) em terras amenas, definitivas.

A viagem fora, porém, esgotante e o seu pio calou. Assim ficou, esquecido e empoeirado.

Anos volvidos, já recentemente, levaram-no ao médico e foi submetido a uma cirurgia. O cuco era recuperável... Readquiriu o seu canto, a medicina tem façanhas destas. Trazia uma vértebra partida mas foi pronta a sua colagem. Pior lhe aconteceria se se mantivesse nesta nefasta mudança de ninho... Contas feitas, a armação do seu veado e as caçadeiras sob a dita  enviesadas; as peças de caça pendentes; e o mostruário e os demais enfeites - oh grande cuco, tudo era vivo!

Por isso, muito cantarás ainda, velho cuco, neste teu ninho. E só calarás quando a parede, guarida tua, se for desta para melhor. Aí, querido cuco, irás também. Mas sossega: outra casita te acolherá. Nem que seja para guardar as cinzas do teu amestrador.