"Memorial dos netos em Souselas"
É um hábito cujas raízes já nem rego: todos os anos, por esta altura, um livro mais editado, geralmente abordando temas de metafísica nenhuma, como é o caso. Uma promessa aos Primos, podia ser só uma brincadeira porque havia sempre o escape de, no dia seguinte ao pantagruélico almoço da Páscoa passada, nem eu nem os restantes se lembrarem dela.
Mas cumpri-a. Vamos deixar a nossa casa de Souselas (tem de ser, e o que tem de ser tem muita força) e antes de fechar a porta, antes de entregar a chave, urgia ensacar e trazer connosco as nossas memórias mais ou menos antigas. E essa foi a minha promessa e a minha escrita de umas semanas. Parece que retinha na mente o bastante, a que acresceram as recordações de mais uns tantos. E um prolongado processo de selecção de fotografias de família, em relação ao qual invoquei o meu estatuto de neutralidade.
Souselas foi a nossa vida toda. Férias de maravilha que, para um aldeão como eu, valiam sobretudo pela companhia dos Primos, pelo café no fim da rua, pela electricidade (é: eu, poluidor, vivia a candeeiros de petróleo!) e pelo fartote de pescarias, manhãs e tardes inteiras agarrado ao rio. Curiosamente, em Souselas nunca conheci qualquer caçador. Mas contou-me há pouco um taxista do Luso, a sua serra era fértil em perdizes e coelhos!...
Pois, mas na altura devida (Outubro e Novembro) a casa esvaziara, e nós no liceu e em outros locais assim pouco recomendáveis. Entretanto, ainda na Década de 70, chegou a CIMPOR, comprou a serra toda, aramou-a e pôs-se a comê-la alarvemente para defecar cimento. Foi como ensombrou e borrou Souselas inteira, liquidou o peixe do rio e desertificou os campos acenando com empregos fabris. O tempo, esse cúmplice de todas as dores, matou os velhos substituindo-os por novos de quem somos apenas desconhecidos.
Era um mundo todo vindo por aí abaixo sem freio. Do mal o menos, a Junta da Freguesia terá voz activa nos destinos da nossa saudosa casa.