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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.07.24

NA CAPELA DE N. S. DA BOA VIAGEM.JPG

O passeio à Ericeira era conversa de muitos anos, já tantos que eu conhecia de cor a história do chalet dos tios milionários e a estrondosa ovação na Ribeira de Ilhas, assim tilintassem no areal as pulseiras da minha loira amiga.

De modo que acabámos por ir. Na camioneta apanhada no Campo Grande, porque cedera o carro à sua irmã, assunto inadiável... (A quem, de resto, muito grato fiquei, à irmã e ao assunto...) Fomos confortavelmente pela A8, saímos na Venda do Pinheiro, revi o Convento de Mafra, o santuário do José Franco, e até gabei o especial encanto da gente saloia...

- Saloio é você! - interrompeu brusquíssima. - Não, não, eu serei decerto um parolo - expliquei pausadamente e sem pormenores sobre a minha cotação nortenha. E em detalhe falei de Torres Vedras, da Amadora e de Loures antes do betão, da Sintra de antigamente, de Arruda dos Vinhos... Em suma, dessa região aproximada de Lisboa de onde, ainda no tempo dos avozinhos da minha querida e precipitada amiga, chegavam diariamente, estafados e cinzentos de orelha caída, dúzias de burriquitos carregados de hortaliças, legumes, farináceos, frangos e anhos para a Capital se alimentar. Chama-se "saloia" tal região e eu não era culpado de terem deturpado o designativo. Que fosse ao seu Google de estimação confirmar isto tudo.

Creio ter sido veemente. Não houve contradita.

Enfim a Ericeira. E o Jogo da Bola, as Furnas, a Praia dos Pescadores (o chalet dos tios milionários uma ruína torpe), e o Hotel, agora chamado Vila Galé, a lembrar não sei que novela progressista do José Viana, que Deus haja. Apontei-lhe a lápide na Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, evocando o respeito dos ericeirenses pela nossa Família Real, a caminho do exílio.

- Ora! Lá vem você com a pantominice da Monarquia!

Uma vez mais me calei. A Princesa das Astúrias deve estar a aparecer por aí, em visita oficial, e imagino a minha amiga, saidínha do cabeleireiro, reluzindo das pulseiras, a correr para Belém e em biquinhos de pés a bater-se à recepção. É claro, estando eu já de volta à minha plurissecular parolice minhota...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 09.05.24

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Nunca eu imaginara o Camões assim despido de vagabundagem ou de idosos ao solzinho. Não, agora tudo era movimento, cor, juventude, tantos calções a cobrirem pernas branquinhas, vindas dos nevoeiros perpétuos.

Ante tal multidão ainda me ocorreu - querem ver que a República se lembrou por fim deste que tanto jeito lhe fez outrora? Porventura haveria comemorações dos seus 500 anos?

Fui subindo o Largo e observando os circunstantes. Eu tinha função, tinha oração de sapiência ali perto, apertara-me até numa gravata e num blaser. Caso único nas redondezas, onde também ninguém falava português, sequer castelhano.

Foi quando ouvi o ímpar, internacional, tilintar das pulseiras da minha Amiga entre o aglomerado de gentes. (Que eu pelo cabelo nunca a distinguiria, tal o vulcão de loiraças junto à estátua...)

- Então por cá?! - exclamou. Pois, viera do venerando Minho, convidado para botar palestra, duvidando estar em Lisboa que jamais conhecera assim.

A minha Amiga explicou então, o cosmopolitismo chegara enfim. O mundo convergira para a nossa Capital. Novos mundos, dizendo melhor. Outras civilizações, outras culturas, outras liberdades e mentalidades. Finara-se, morrera, o nosso provincianismo ingénito. Tivesse eu tempo e interesse para um cafezinho na Brasileira e ela explicaria tudo...

Claro que tinha tempo e interesse e outras vontades muito mais intensas. Descemos, por isso, ao Chiado, onde se acumulavam a thousands of tuk-tuks em formato de Ford T. Num deles uma senhora lindíssima a quem pedi me deixasse fazer uma fotografia de conjunto, a dita ao volante do seu bólide.

- Sim, com certeza, pois claro. - E, palavra puxa palavra, a conversa demorou-se um pouco, literatura apenas, é óbvio, mas por muito alvas e compridas que sejam as barbas de um minhoto, uma senhora bonita, a esverdear dos olhos, é sempre literatura e da melhor...

Foi quando a minha Amiga me beliscou fininho o antebraço. Amuada, furiosa, falando toda brusquidão. Já lhe escasseava o tempo para o cafezinho, urgia tornar ao Largo de Camões. Intercâmbios... E virou-me as costas, quase correndo em direcção às outras liberdades e às outras mentalidades...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 24.12.23

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Urgia aplacar os espíritos. Uma zanga - jamais! Assentou então, a minha sonora e discursante loira amiga, num passeio até Cacilhas com almoço - um peixinho grelhado - em amena cavaqueira sobre a vida que nos tolhe, sobre tudo. O dia marcado saíu nebuloso, feio, um dia que (pensei logo) seria uma prova dos nove.

Por coincidência, ambos tínhamos lido recentemente o Filipe I de Portugal, o Rei Maldito da Isabel Stilwell. Obra curiosa. E não podendo deixar de vir à baila entre as baforadas do nevoeiro que nos cercava.

(Um minhoto é sempre um homem de uma só fé. E um minhoto verdadeiro aguardará sempre a Coroa que há de regressar. Tudo sem prejuízo da realidade quotidiana que nos diz nada cai do céu aos trambolhões...)

Porém, o cinzento do dia e o desaire lido de Alcácer Quibir principiaram a suscitar falas incomuns na minha amiga. Uma crise aguda de misticismo, nunca a vira assim. Toda a nossa toldada visão significava o advento d'O Desejado. D. Sebastião estava iminente, ela sentia-o, a profecia realizar-se-ia a qualquer momento, o prenúncio de uma Nação ressuscitada. Paradoxo dos paradoxos, retorqui com a tese de que O Desejado estava em cada um de nós e na nossa audácia. Até citei Pessoa e a sua Mensagem, da pouca poesia que sei de cor, - «Minha loucura outros que a tomem/Com o que nela ia/Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria».

Debalde. Havia somente que esperar (um nadinha, era hoje) por El-Rei. (Imagine-se!) E esta fulgorosa troca de ideias entrou cacilheiro adentro, de espada em riste, troando os trons quinhentistas e misteriosos, reencarnando a hoste inteira de D. Sebastião.

Confesso, desliguei. Fui tomando nota das cores ocultas, do Tejo, dos sulistas a bordo, malta suspeita de aspecto obviamente republicano... E de súbito um berro - Ai! Vamos ser abalroados! - Placidamente espreitei a escotilha, sob o nervosíssimo tilintar das suas pulseiras. Um senhor minhoto não perde a fleuma mesmo com uma embarcação direita à nossa, de bombordo... Comentei tão-só - Viva! Há de ser D. Sebastião já entrado no Tejo!