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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.03.25

IMG_9667.JPG

Lá parti para Lisboa sempre contrariado, mesmo porque as razões da ida eram as piores. De tal modo, avisei previamente a minha amiga e deixei escorrer na sua loiraça cobertura as minhas dores todas. Com a maior surpresa, ela esperava-me à chegada em Santa Apolónia.

Foi o beijo (às vezes são dois, outras um só...), o abraço (ora até que enfim...), um apoio de que lhe ficarei sempre grato. Caminhávamos na gare, eu ia narrando os tristes acontecimentos, o movimento era menor e, subitamente, a minha amiga pulou na vertical e soltou um grito estridente - A terra tremeu! - garantiu ela, - A máquina mexeu-se toda!

A "máquina", percebi, era a locomotiva solitária que eu acabara de fotografar para matar o vício. Assim como quem atira a uma perdiz já no outro lado do mundo. No dizer nervoso de quem agita as pulseiras a tilintar,  - ocorrera um sismo! Coisa muito em moda em Lisboa...

Bah! - saiu-me do espírito, Nada fazia sentido, a minha terra minhota é dura, granítica, e por isso a primeira percepção havia de ser comigo, não com a agudíssima amiga.

Mas, jurava-me, a dita "máquina" abanara-se, tinha saltado até. Fora um tremor de terra!

Ao lado, um feminino pelotão de limpeza composto de gente habituada ao iminente perigo dos leões, repousava na maior calmia. Mais ninguém aparentava dar pela ameaça. Toda a Capital parecia dormir no seu frenesim de sempre. A minha amiga, contudo, não sossegava. E menos aceitava a locomotiva não tivesse dado um traque, ou algo parecido.

Acabei sugestionado depois de rever a fotografia da "máquina". E se tivesse sido um terramoto, uma simples transidela?

Então pensei no Moedas, no Marquês de Pombal, no arquitecto Maia, e nas imobiliárias, na Lei dos Solos. Foi a minha vez de tremer. E se ocorresse, de seguida, outro maremoto? Se ele fosse além de S. Bento e alcançasse Famalicão, o que nada me conviria?...

- Oh minha amiga, faça a fineza, leve-me daqui depressa!...

E marchámos. Regressei ao Norte ainda nesse dia, aliviado, fugindo de locomotivas puladoras e maremotos à bica.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 23.12.24

IGREJA DA MEMÓRIA.JPG

São mares por onde navego pouco. Da Ajuda quase só conheço a íngreme subida então calcetada e o metal dos cascos ferrados da cavalaria da Guarda. Outros tempos!... Mas ocorreu, entretanto, a nova da igreja da Memória, erigida por El-Rei D. José, mui grato por escapar à pretensa tentativa de assassinato e, por iniciativa da macacada republicana, o local para onde trasladaram os restos mortais do Marquês. (O da estátua imensa.) Pois não obstante a minha tardia chegada a Lisboa - cheio de afazeres no dia seguinte - não resisti, já noite, a uma espreitadela a tão discreto e silencioso templo, na vizinha Calçada do Galvão.

E assim dava conta dos seus barrocos arrebiques e da calmaria circundante, fotografia após fotografia, já alheado do mundo real àquela hora no intervalo. Eis senão quando esse recolhido ambiente é perfurado por um inesperado tinir. - O Sagrado Viático! - foi a minha primeira, triste, acabrunhada, ideia. E olhei, espreitei - topando, em vez do agoirento cortejo, o passinho apressado da minha amiga. Sempre chocando comigo, sempre loirinha, sempre a balir das suas pulseiras. Sempre surpresa - Olá! Por aqui?

Pois, por ali... Ela, ao que parece, mudara recentemente para a Ajuda e estava instituindo uma imbatível linha-piloto de tuc-tucs. Subitamente atenta aos meus considerandos sobre a igreja e o Marquês, mas sem margem para dúvida a leste da temática. E por isso se refugiou na estátua gloriosa, no leão como um gatinho aos pés de Sebastião José. Desse  - Grande Homem!

É claro, recordei-lhe o berço maçonico do monumento, o malandro do Salazar uma vez mais a fazer-se distraído... E sempre incapaz de argumentar ou saber perder, a minha perfumadíssima amiga verteu Calçada abaixo, com um - Adeus! - já de costas.

Dei comigo sozinho. Sem um taxi que passasse, sem paragens de autocarros, sem vivalma nem, ao menos, qualquer tasquito para uma bucha. Apenas com a vaga noção dos Jerónimos mesmo lá no fundo - para onde me encaminhei, tristonho, sentindo ainda no ar os sedutores aromas exalando daquele corpinho tentador, o tilintar da minha amiga, momentos de outrora, passageiros mas muito íntimos. E a velha raiva pelo hediondo Marquês, ainda agora tratando à marretada a gente ilustre do Reino!...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.07.24

NA CAPELA DE N. S. DA BOA VIAGEM.JPG

O passeio à Ericeira era conversa de muitos anos, já tantos que eu conhecia de cor a história do chalet dos tios milionários e a estrondosa ovação na Ribeira de Ilhas, assim tilintassem no areal as pulseiras da minha loira amiga.

De modo que acabámos por ir. Na camioneta apanhada no Campo Grande, porque cedera o carro à sua irmã, assunto inadiável... (A quem, de resto, muito grato fiquei, à irmã e ao assunto...) Fomos confortavelmente pela A8, saímos na Venda do Pinheiro, revi o Convento de Mafra, o santuário do José Franco, e até gabei o especial encanto da gente saloia...

- Saloio é você! - interrompeu brusquíssima. - Não, não, eu serei decerto um parolo - expliquei pausadamente e sem pormenores sobre a minha cotação nortenha. E em detalhe falei de Torres Vedras, da Amadora e de Loures antes do betão, da Sintra de antigamente, de Arruda dos Vinhos... Em suma, dessa região aproximada de Lisboa de onde, ainda no tempo dos avozinhos da minha querida e precipitada amiga, chegavam diariamente, estafados e cinzentos de orelha caída, dúzias de burriquitos carregados de hortaliças, legumes, farináceos, frangos e anhos para a Capital se alimentar. Chama-se "saloia" tal região e eu não era culpado de terem deturpado o designativo. Que fosse ao seu Google de estimação confirmar isto tudo.

Creio ter sido veemente. Não houve contradita.

Enfim a Ericeira. E o Jogo da Bola, as Furnas, a Praia dos Pescadores (o chalet dos tios milionários uma ruína torpe), e o Hotel, agora chamado Vila Galé, a lembrar não sei que novela progressista do José Viana, que Deus haja. Apontei-lhe a lápide na Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, evocando o respeito dos ericeirenses pela nossa Família Real, a caminho do exílio.

- Ora! Lá vem você com a pantominice da Monarquia!

Uma vez mais me calei. A Princesa das Astúrias deve estar a aparecer por aí, em visita oficial, e imagino a minha amiga, saidínha do cabeleireiro, reluzindo das pulseiras, a correr para Belém e em biquinhos de pés a bater-se à recepção. É claro, estando eu já de volta à minha plurissecular parolice minhota...