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Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Jam Sem Terra

(MAS COM AS RAÍZES DE SEMPRE)

Visita à Sortelha

João-Afonso Machado, 06.06.23

O problema da Sortelha é a sua qualidade de vila velha e fortificada, o seu estatuto de "aldeia histórica" e a vaga de espanhóis e demais turistas que as suas muralhas já não contém. Contingências...

Tudo parecia correr bem. Nos meandros da serra da Pena, bravio de penedos e dos estevais onde o gado se esfola e, ainda assim, rumina indigestos almoços e nos acena pacíficos adeus...

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A Sortelha dos cartazes publicitários depara-se-nos adiante, cobrindo um cabeço todo onde a atracção é o topo. É lá a dita "aldeia histórica", o pomo do desassossego. Com a aproximação, a par do castelo o granito e a telha, a confusão, vencida a porta desta vila antiga sede de concelho, hoje freguesia integrada no Sabugal.

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(O carro fica estacionado muito atrás, entre imensos, na berma, manobra complicada a lembrar as noites das romarias minhotas...)

Entramos no roldão da massa compacta dos visitantes. Cada fotografia é uma espera longa, sob os holofotes das selfies em família. O mundo medieval ali reproduzido nunca foi assim. Mas, com toda a pachorra, as imagens vão surgindo. O castelo assume outro realce

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assim como os antigos Paços do Concelho, agora a sede da Junta de Freguesia,

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que o Presidente zelosamente fecha, farto - digo eu - de tanto movimento de gente. A tarde vai no início... O casario cerrado a sete chaves, que hoje é dia "deles". Foi preciso esperar muito para uma fotografia limpa do pelourinho e do que é o largo principal da antiga Sortelha.

PELOURINHO E ANTIGO PAÇO DO CONCELHO.JPG

Subir à torre castelã é gozar o oceano pacífico de tolices, até aos contrafortes da Estrela. Com o aspecto inédito de as ruínas da Misericórdia local serem fora das muralhas, a apontar o dedo para esse tão longe.

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Os pés continuam por carreiros só deles, de poiso em poiso, carreiros matreiros onde aqui e ali deparamos com oliveiras, figueiras, laranjeiras, árvores sobrevivendo aos mortos, bocaditos de verde entre o esquentado da pedra

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mantida como a preciosidade maior. Pedra trabalhada, quase toda ela, com a rudez da dos dias simples e antepassados; pedra silente que não merecia os ecos de tantas vozes; pedra antiga, de uns séculos que se conspurcam à força de uma plateia assim...

O mais ficará para quem visite a Sortelha. De lá trouxe apenas um pardal amestrado

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em telha velha de telhado idoso, pardalito que, de tanto os mirar, já não teme os humanos

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e mais uma imagem subidia deste aldeia igual a outras de antigamente - belíssima, somente com o sabor insonso de um museu mantido para o turismo... quase de baioneta calada. Não há mas sem senão...

 

Belmonte

João-Afonso Machado, 26.05.23

A Estrela não fica longe - a serra;

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que a de David é lá, Belmonte será sem dúvida a capital do judaísmo português. Essa era uma curiosidade minha, muito maior do que a de conhecer a casa-fortaleza dos Cabrais do histórico Pedro Álvares que dali partiu para o litoral lisboeta, e depois para a aventura do Brasil - tão ao engano - sendo que, decerto, a ignorância do caminho marítimo não superou a do terrestre...

Estimei o castelo.

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Abri o bico perante a sua janela manuelina. Nela li o marco apalaçado e triunfante do feito glorioso de Pedro Álvares Cabral, descoberta que perpetuou a sua estirpe nos nossos anais.

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Para não variar, Belmonte ia invadida de gente. Motivo acrescido para fugir em busca dos lugares que a multidão menos preza. E de beco em beco, mesmo abaixo do castelo, lá cheguei.

O primeiro sinal deu-mo uma estrela israelita mais uns dizeres hebraicos em moradia pétrea.

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Adiante, em construção recente, a placa - Radio Judaica Portuguesa. Aí, sim, estaquei e bati à porta.

Atendeu uma senhora mais curiosa do que eu e muito pronta em inquéritos. - Sou um cristão-velho - disse-lhe, a pô-la de sobreaviso, a atemorizá-la. E depois, amenamente esclareci, expliquei o meu interesse pela cultura judaica, pelos rituais em segredo mantidos no andar dos séculos; revelei o meu saber da existência em Belmonte de um rabino oriundo de Israel, da sua organizada comunidade, de alguns apelidos das antigas famílias dessa origem; da tradição sempre mantida, enfim. A senhora reanimou, apresentou-se - Ana era o seu nome - e abriu as portas. Narrou episódios para mim desconhecidos

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e os meandros informáticos - em que também sou leigo - através dos quais transmite para todo o mundo o seu programa. Só achei bem, só estimulei. A sala tinha as paredes repletas de estantes com CD's e DVD's e havia uma prateleira de souvenirs onde pontificava o galo de Barcelos num tira-tampas verde-rubro-republicano. Perfeitamente à moda indiano-paquistanesa que nos assola... É claro, não obstante as suas multiplas insistências, recusei a compra. Antes me convidasse a Ana para uma peça genuína e condizente com o velho Javé... Era askenazim, tal significando serem as gentes semitas dali de uma condição mais humilde (socialmente, pelo menos) do que os poderosos sefarditas.

Conversámos muito acerca dos mistérios de Judah no curso dos séculos em Belmonte. À despedida, desejei-lhe a melhor fortuna. Não apertou a mão que lhe estendi, desculpando-se muito e invocando cautelas de saúde. Ainda usava a máscara dos idos tempos do covid... E, saindo, no fim da rua dei de caras com a sinagoga.

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Não enorme mas obviamente de culto permanente. Alegrei-me - Deus Pai é multifacetado e as gentes pacíficas. Isso mesmo confirmei no cemitério

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entre campas, nomes e gentes co-entendidas na Eternidade. Assim o proclamavam as tantas sepulturas com a cruz ou estreladas... Ao que percebi, pela história da Ana, a crença judaica em Belmonte vai saindo da casca e os rabinos são já dois, o mais novo ainda em fase de aprender a nossa língua. Oxalá a sua apologética seja bem sucedida, e a cristã não lhe fique atrás. Crer faz bem ao ser...

Por tudo, uma terra única, Belmonte. Depois do esconderijo de séculos, uma assunção de vida à luz do dia. Ombreando com a outrora sua inimiga religião. Que em consciência e em liberdade - cada qual escolha por si.

 

O Sabugal

João-Afonso Machado, 19.05.23

Tinhamos acabado de chegar e o gigantesco felino esculpido na pedra, de costas para nós no cimo da praça surpreendeu-nos, que divindade seria aquela? Mas a nossa atenção logo se desviou para a brasileirada na outra extremidade, onde uma senhora posta num estrado iniciava as sabugalenses nos mistérios da aeróbica. Foi, realmente, uma chegada ruidosa muito para além do previsto! E o felino assustador vinha a ser um lince colossal, homenagem ao saudoso desaparecido da vizinha serra da Malcata.

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Iamos um sábado já muito entardecido e o Sabugal, felizmente, lá regressou à sua quietude própria. As artérias acumulando os seus silêncios em volta das pedras do castelo no ponto mais alto.

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Era, por fim, o Sabugal sonhado e ansiado, agitado apenas pelo rodopio das andorinhas sob os beirais.

Assim descobrimos a cegonha de regresso ao seu ninho. Um ninho, reconheça-se, assaz urbano, sustentado por tijolo e cimento e alguma cor.

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O Sabugal fazia a sua apresentação entre os mais belos edifícios

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e a evasiva subida para o castelo através da única porta sobrante da primitiva fortificação, anterior à Nacionalidade.

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Também o torreão à sua ilharga albergava cegonhas folionas, ainda não chegadas a casa.

Aqui e ali o trabalho empenhado de avôs e avós, uma espécie de descasca conversada com os netos, a dar mais encanto ao recato dos becos

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e dos largos floridos e dolorosos das costas no amanho doméstico.

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Atravessámos o Sabugal. Abundavam os turistas, um género que alguns confundem com os viajantes... esquecendo que são eles, os turistas, que se alapam nos lugares que os viajantes querem fotografar em toda a sua pureza, na busca das lições que transmitem. 

Mas no sopé da vila, onde descemos ao encontro do Coa, esse rio que sobe o mapa até se diluir no Douro, reencontrámos a sonolência da tarde. Cumprimentámos o Coa, gabámos-lhe os reflexos,

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as pontes, os passadiços e as poldras. E o Coa explicou-nos então que as trutas não eram ali, naquelas águas que se confundiam na proliferação vegetal.

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Um pescador numa margem debandou antes da hora ideal, a do sol poente. As cegonhas já repousavam, mesmo as mais atrasadas estavam nos seus ninhos do torreão. O castelo iluminara-se

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e nós avançamos intemeratos rumo ao jantar, que são de nomeada as carnes beirãs.